quinta-feira, 2 de julho de 2009

Vendedores

Emerson chega ao escritório e senta-se em sua mesa, a primeira do lado esquerdo, em frente à janela que dá para a rua Barão de Itapetininga, na República. Coloca as mãos no queixo apoiadas na mesa e, em seguida, olha o relógio. “Estão atrasados”, pensa.

Corpo de rapaz, pernas e braços finos, baixo, magro, a boca pequena contrasta com a voz firme e determinada, muitas vezes confundida com irritação, por isso tem fama de bravo. Seu sorriso é meio desconfiado, parecendo forçado no rosto marcado por traços orientais. A pele morena com pouco pêlo, os cabelos arrepiados, as roupas e sapatos de marca e o brinquinho branco e brilhante na orelha lhe dá um ar jovial.

Preocupado com a saúde e a forma, freqüenta academia de ginástica e toma suco de laranja todos os dias. Às quintas-feiras joga uma bolinha para desestressar do trabalho, mas às vezes torce o pé e fica dias mancando. Seus olhos estão sempre brilhando como uma chama alimentada incessantemente e considera a informação fundamental para o crescimento pessoal e profissional, por isso sempre lê, participa de cursos e possui assinatura da revista Venda Mais.

A vontade de vencer na vida o torna focado em torno de seus objetivos traçados a curto, médio e longo prazo. Em longo-prazo, pretende se aposentar aos quarenta e cinco anos para viajar e curtir a vida. Acredita em Deus e possui o nome de Jesus gravado em uma pulseira que usa no braço esquerdo.

Emerson, anos atrás, viveu em um barraco e era camelô. Vendia relógios despertadores nas ruas de São Paulo, até que descobriu a assinatura de revistas da maneira mais inusitada. Ouviu um de seus clientes comentar que ia trabalhar neste ramo para ganhar muito dinheiro. Poderia comprar apartamentos, casas, carros, ter dinheiro no bolso para gastar à noite. Pediu o endereço e compareceu ao escritório no dia seguinte.

“Comecei a trabalhar com assinatura e descobri que com um contrato vendido ganhava mais do que em um dia inteiro vendendo relógios despertadores. Era lá mesmo o meu lugar. No primeiro mês não consegui vender bem, mas depois comecei a estourar. No começo passei por muitas dificuldades. Saía de casa seis horas da manhã e só chegava meia-noite. Meu almoço era cachorro quente. Durante um tempo nem podia ver cachorro quente na minha frente. Depois evolui para o prato feito, que dividia com um amigo afim de economizar, e depois para o comercial que também era dividido.”

“Gostava de trabalhar de terno, gravata e com uma pasta, pois sempre invadia congressos, feiras e festas onde era confundido com os convidados. Aproveitava para abordar e vender assinaturas. Também invadia prédios comerciais chiques e, a partir da observação, conseguia saber com que banco os funcionários trabalhavam. Chegava lá e me apresentava como representante do banco e procurava pela Maria, que teria sido sorteada - nessas repartições sempre tem uma Maria. Dizia que ela ganhara um brinde do banco e vendia minhas assinaturas. Depois conseguia dela os nomes dos colegas. Eu vendia muito. O dinheiro começou a cair no bolso e apesar de ser de origem pobre tive juventude de playboy. Comprei jet sky para sair com as gatinhas, carro, apartamento para mim e para minha mãe. Pouco depois de comprar o primeiro carro, ele foi roubado pelos vizinhos que não aceitavam minha prosperidade. Eles se perguntavam: Mas como esse moleque tem dinheiro se não é envolvido com drogas? O roubo do carro me abalou, mas nunca pensei em desistir. Comecei a trabalhar no gás e logo depois comprei outro e me mudei de lá”.

Emerson gosta de contar sua história aos vendedores para estimulá-los a trabalhar. Todos ouvem atentos. Ele olha mais uma vez no relógio porque muitos ainda não chegaram e ao voltar sua atenção para a porta seu olhar segue uma garota loira e sensual que entra no escritório.

- Vai trabalhar hoje? Pergunta.
- Vou.
- Você sabe que não pode trabalhar de saia.
- Mas eu vou trabalhar na rua, responde a garota em tom de desafio.
- Não vai não. Você sabe que não pode. Faz isso para me irritar. Você não tem massa encefálica?

A cena parece ser comum no escritório, pois todos continuam sua conversa normalmente como se fizesse parte da rotina. E faz.Logo depois, o casal já está de bem. A loira sensual, esposa de Emerson, chama-se Daiana e minutos depois do acontecido já cochicha e sorri nos ouvidos do esposo. Eles se conheceram na assinatura, ela engravidou cedo e juntos tiveram uma filha chamada Hana, que hoje tem cinco anos. Daiana, apesar da insistência, não foi trabalhar, mas não é só ele que é ciumento. “Ela tem um ciúme do caralho. Toda vez que tinha que participar de feiras fora da cidade ou levava ela junto ou nossa filha”.

Emerson construiu um patrimônio vendendo assinaturas de revistas e hoje com trinta anos possui sociedade na empresa Oficina de Vendas, um dos escritórios que representa a Editora Globo em São Paulo e que possui mais de 70 vendedores.

Cheiro de Café

Os vendedores chegam aos poucos no edifício La Royale Nº 221 da Rua Barão de Itapetininga, saúdam com algazarra o recepcionista Hugo e sobem com o ascensorista JR. Sempre gritam: Terceeeeeeeeiro! Às 8h30 o burburinho aumenta. O cheiro do cigarro torna-se forte e a fumaça fica no ar como nuvens no céu. As três garrafas de café colocadas no canto esquerdo do escritório esvaziam-se aos poucos.

Todo o terceiro andar é ocupado pelo Oficina de Vendas. Do lado direito, encontra-se uma sala com a recepção onde três cadeiras ficam dispostas próximas à parede, espremidas junto a um estande de feira e mais à frente, separada por um balcão e uma parede de vidro, fica a administração, onde os vendedores pegam contratos de vendas, conferem seus créditos (quanto caiu na conta bancária, pois recebem toda semana às segundas-feiras), pegam o boleto para preencher com os dados das vendas do dia anterior e a ajuda de custo dada pelo supervisor aos vendedores que estão começando. Essa ajuda é dada por, no máximo, um mês e varia de cinco a dez reais.

Do lado esquerdo, uma imensa sala com várias mesas dispostas e cadeiras em redor. São as mesas dos supervisores de vendas e as cadeiras dos vendedores. Cada mesa é um pequeno grupo que faz parte de um grupão que tem o objetivo de superar-se a cada dia.

Nas paredes brancas, certificados de participação de Emerson em diversos cursos e palestras e vários quadros com palavras de incentivo como “Acredite em seus sonhos”, “Abaixo o mau humor!”, “O sucesso só vem antes do trabalho em dicionários”. Atrás de cada mesa do supervisor, existe um quadro acrílico com a ordem de venda de cada vendedor. Em um canto separado, perto da mesa de Emerson, o quadro das melhores equipes onde a sua está invariavelmente entre as melhores. Esses quadros são observados e dissecados com atenção todas as manhãs pelos vendedores, sempre querendo estar no topo. À esquerda desta sala, fica o auditório onde acontece o treinamento de novos vendedores, a administração interna, a sala de Emerson e de seu sócio Barros, copa e banheiros.

A animação toma conta do escritório. Quem chega triste logo é contagiado pela energia positiva do ambiente. No entanto, as conversas giram em torno das vendas do dia, das metas, dos objetivos, dos problemas e casos familiares. Pouco ou nada se fala sobre política, economia e cultura.

Cada supervisor precisa motivar seus vendedores a vender bem, a procurar motivos para ser o campeão do dia. Além da equipe de Emerson, existe a de Barros, Renata, Edo, Moisés e Peixe. Depois da conversa com os supervisores, os vendedores saem animados do escritório com pacotes de revistas nas mãos.

- Quero um barão hoje, Rodrigo. Grita Emerson de sua mesa
Um barão, na linguagem de assinatura, quer dizer mil reais.
- Se me trouxer um barão, ganha um premiozinho.

Antes de trabalhar, Rodrigo, como a maioria dos vendedores, passa no Café Cia dos Lanches, uma lanchonete que fica próxima ao escritório, ainda na República na rua 24 de maio. Em geral, os vendedores são jovens, têm entre 15 a 24 anos e para economizar uma passagem de metrô, costumam ir para a estação São Bento onde a fiscalização é menor e eles quase sempre conseguem catracar (empurram a catraca para trás e abrem espaço para passar) ou roletar (um paga, mas não passa definitivamente, só abre espaço para o outro) Neste caso, os dois dividem uma passagem de dois reais e os olhares censuradores e assustados das pessoas.

“Somos VIP, fia. Aqui ninguém paga nada, não. V-I-P. Uma vez o fiscal viu a gente e saiu correndo atrás, mas demos sorte porque o metrô ia chegando. Entramos e ficamos rindo da cara dele, mas se ele pega, era cacete”.

Primeiro dia de um Bié

Chama-se Bié todo vendedor que está iniciando.

Quando Rodrigo lembra do primeiro dia de trabalho ainda sente uma ponta daquela angústia da incerteza do que esperar porque não é destino fácil. As recompensas são grandes se se tem êxito, mas pouquíssimos têm êxito. Os obstáculos são importantes em vendas, mas como em todas as carreiras, a vitória só vem depois de muita luta e de inúmeras derrotas. As primeiras dúvidas são: por que as pessoas não me dão ouvido? Por que se afastam? O que devo dizer quando dizem que não podem pagar? Que medo é esse que me domina ao abordar as pessoas?

“Quando você não consegue vender e fica zerado o dia inteiro logo vem à cabeça a pressão do seu supervisor e todas as contas que estão em casa para pagar. Nesse dia você paga para trabalhar e ouviu tantos nãos, tantos nãos que fica meio zonzo e manda todos os clientes para aquele lugar. Aí é que não vende mesmo porque passa tudo que acontece no seu interior para o cliente. Você precisa estar bem, entusiasmado e com pensamento positivo. Quando não vendo sinto um grande vazio, uma insatisfação, um buraco no meio da alma que me diminui diante dos clientes e faz com que a vida perca o sentido. Me sinto um fracassado, um incapaz, frustrado”.

No primeiro dia Rodrigo não vendeu.

Pedras e Balões

No meio da assinatura, os clientes que não compram ou que colocam muitas objeções são chamados de “pedra”. “Esse cara é muito pedra” e os que fazem assinatura sem questionar são chamados “balão”. “Peguei um balãozão”. Os vendedores vivem num mundo de pedras e balões, onde as pedras podem tirar a auto-estima. Muitas pessoas se afastam correndo quando vêem os vendedores, passam indiferentes ao chamado como se não estivessem escutando e há os que atacam: “Vocês estão enrolando as pessoas, clonando cartão”. O momento mais difícil de vender na rua é na hora de pedir o cartão de crédito porque a maioria das pessoas fica com medo e desconfiada quando o vendedor começa a decalcar – pegar os números, nome e data de validade usando papel carbonado- por isso, os vendedores sempre usam uma brincadeira.

- O senhor já conhece a tecnologia de ponta?
- Como assim? Pergunta o cliente.
- Ponta do dedo. O vendedor sorri enquanto raspa o cartão do cliente na folha carbonada usando as unhas ou uma caneta.

Na rua

Rodrigo, 16 anos, alto, magro, voz fina e meiga, faz o segundo ano do Ensino Médio- apesar de dizer que faz o terceiro- fuma e às vezes falta na escola para poder apresentar uma venda a mais no dia seguinte. Faz isso escondido do supervisor Emerson. Curioso, pergunta o porquê de todas as coisas numa atitude de grande interesse pela vida. Nesse dia, não pegou o metrô na São Bento porque descobriu “um pico da hora para trampar”. Pico é um local bom de vendas. Geralmente, os vendedores saem para trabalhar na rua em dois ou três. Nunca sozinhos porque fica mais difícil de abordar e mais fácil dispersar. Rodrigo pegou um ônibus com Vivi e foi trabalhar na Universidade Paulista, mas chegando lá os seguranças falaram que ele não podia ficar. “Queimou o ponto”. Diz-se que o ponto está queimado quando o gerente do banco ou da loja e o diretor das faculdades não permitem o trabalho com assinaturas. Isso acontece principalmente porque os vendedores usam o nome da instituição.

- Falou com a Márcia dentro da UNIP?
- Viram a faixa? Os alunos ganham brinde. É só pegar aqui ó.

Já era uma hora da tarde. O sol estava forte. Rodrigo e Vivi amarraram a blusa de frio na cintura e tiveram que caminhar meia hora até o banco mais próximo.

- Agora a gente tem que trabalhar no gás porque o primeiro pico queimou e a gente perdeu tempo.
- Beleza.
- Olha, lá vem um balão. Vou trancar ele agora.

Rodrigo passou a mão no rosto e abordou um jovem que saía do Banco Real em companhia de sua mãe.

- Já pegou o brinde, senhor?
- Todos que vêm ao Banco Real hoje que possuem o cartão Mastercard ou Visa ganham um brinde. Qual é o seu?

O cliente, meio desconfiado, respondeu:

- Mastercad.

Rodrigo pega uma das revistas que tinha deixado num canto próximo e entrega ao senhor.

-Parabéns. Então ganha o brinde e participa da Campanha Nacional de Incentivo a Leitura. O senhor assistiu ao Fantástico domingo?
-Não.
- Tava passeando, heim? Questionou em tom simpático.

O cliente mais à vontade frente às brincadeiras se desarma.

- ÉÉÉÉÉÉÉ......, responde.

Rodrigo investe:

- Passou uma matéria que de cada dez brasileiros, só dois tem o hábito à leitura, por isso a Editora Globo lançou a campanha de leitura para todos que têm o Visa ou Mastercad, que patrocinam a iniciativa.

Entrega um folheto com fotografias de revistas.

- Daqui, escolhe duas publicações que mais gosta. Vai receber em casa por um ano sem pagar assinatura.

O cliente meio tonto e confuso devido a pressa e ao envolvimento com o vendedor aponta duas revistas, uma mensal e outra semanal.

Rodrigo pega seu caderno de malho para convencer o cliente a ficar com a assinatura. “Ninguém sai de casa pensando. Oba, hoje eu vou fazer uma assinatura”. No treinamento de vendas, o malho é uma argumentação de convencimento utilizada pelo vendedor, que aprende a fechar a venda sem dar espaço para objeções. Todas as palavras e perguntas são direcionadas ao objetivo do vendedor, que é “trancar” a venda. Todas as objeções têm respostas, entre elas as mais óbvias como “Não tenho tempo para ler”. No entanto, os clientes também são bem criativos para se afastar da compra. Vira um jogo, onde ganha quem tem mais argumentos e simpatia.

Muitos vendedores usam o malho de maneira correta, outros muitos inventam histórias fantásticas dizendo que os cartões estão pagando assinaturas e que a pessoa só vai receber as revistas em casa. Ou que eles só pegam os dados pessoais e do cartão e depois a Editora vai ligar para confirmar a participação na Campanha. Muita gente acredita e um mês depois chega a fatura com a cobrança. A maioria faz isso porque ganha por comissão encima das vendas do dia. Essa prática chama-se “bucha” e é abominada por muitos vendedores. “Caí duas vezes no mundo da bucha, mas depois me senti muito mal porque pensei em alguém de minha família sendo enganado. Agora só faço venda limpa e não caio mais no mundo da enganação”. Se a assinatura for cancelada em até três meses o vendedor paga estorno e tem que devolver o dinheiro recebido.O problema é que para cancelar o cliente tem que ouvir muitas musiquinhas ao telefone até conseguir falar com a Central de Atendimentos da Editora.

Rodrigo passa a mão no rosto para limpar o suor e começa a malhar o cliente.

- Olha só que legal esta campanha. O senhor vai receber essas duas revistas por um ano e não vai pagar a assinatura porque o cartão já pagou. Só vai contribuir com o custo reduzido de capa da campanha. Se fosse fazer assinatura das duas pagaria quihentos e dezesseis reais e oitenta centavos. Participando da campanha esse valor fica só quarenta e quatro reais. O que é melhor: só para daqui a 30 dias. Vem em seis vezes e o senhor recebe as duas revistas por um ano. Hoje, eu só faço a parte social que é pegar o nome e o endereço. A única exigência é que prefira receber as publicações em casa para não ter extravio de correspondência. O senhor mora em rua ou
avenida?
- Rua.

Rodrigo pega o contrato de vendas de novas assinaturas de dentro do bolso de trás da calça e pergunta.

- Qual o nome da rua?

O cliente vai responder, mas pára de repente.

-Mas acho que não vou querer... responde vacilante.

Percebendo a dúvida do cliente, Rodrigo encara firme.

- Então o senhor não entendeu. Vai receber as duas revistas por um ano em casa com conforto e segurança. Informação, cultura, lazer e entretenimento. Todo mundo está participando. Hoje é só nome e endereço. Qual é mesmo o nome da rua?

O cliente se rende.

Depois da venda trancada, Rodrigo beija o contrato. O primeiro do dia. Tinha que fazer pelo menos mais três para ganhar o prêmio prometido por Emerson. Na rua, ganha comissão de 12%, mas não tem carteira assinada e paga transporte e alimentação. Fazendo mil reais, ganha cento e vinte reais em um único dia de trabalho se as vendas não negarem. As vendas negam quando o cartão do cliente não tem mais limite. Neste caso, a venda é passada mais cinco semanas e se mesmo assim não passar, é devolvida ao vendedor.

Em outro ponto da cidade de São Paulo, Fátima com seu jeito maroto e largadão caminha lentamente ao encontro do cliente como se cada passo lhe custasse bastante. Passou o dia inteiro sem vender e ia tentar novamente.

Certa vez quando estava zerada foi até ao amigo pipoqueiro com quem fez amizade na porta do supermercado Wall Mart de Osasco e ofereceu-lhe revistas de brinde caso ele tivesse algum cartão que tava patrocinando a campanha de leitura. Fátima buchou o pipoqueiro. De outra vez ganhou dois pares de tênis. Na hora do almoço, encontrou um senhor chamado Pedro que sempre fazia compras no Wall Mart. O chamou e falou da campanha. Pedro não quis, por isso ela resolveu fazer uma colação.

- Então faz assim: leva essas revistas e contribui com o valor do coração para meu almoço.

- Eu pago um lanche para você, respondeu Pedro. “Não quero mesmo essas revistas antigas”, complementou

Entraram no shopping Osasco e ao passar em frente à sapataria World Tennis, Fátima fala tristemente.

- Tava precisando de um tênis, mas não tenho dinheiro para comprar.

- Escolhe um de presente.

Fátima mal continha a empolgação.

- Pode ser esse?

Apontou um Nike de oitocentos reais. Pedro respondeu afirmativamente com a cabeça.

Pelo visto dinheiro não era problema. Fátima, esperta, retrucou.

- Então, vou levar dois pares Adidas. Dá o mesmo valor.

Chamou a vendedora no canto e falou:

- Separa um par número 42 que vou presentear meu esposo.

Alguns vendedores fazem colação na rua. Vendem as revistas antigas entregues no escritório para chamar atenção do brinde. A maioria tira o dinheiro do transporte e da comida, outros conseguem tirar o da manicure, da água, luz, de uma calça nova.... Há casos de pessoas que abandonaram a assinatura para viver só de colocação. Por conta disso, Emerson resolveu limitar as revistas para quem vai para a rua. No entanto, vendedor sempre dá um jeito e acaba pegando mais com os que levam revistas para os pontos.

Na Laselva

Um dos pontos mais cobiçados pelos vendedores de assinaturas e pelas editoras é a livraria Laselva no Aeroporto de Congonhas, pois o público tem dinheiro e os cartões têm limite alto. Esse é o local mais vigiado e nunca, mais nunca mesmo se pode buchar. Quem trabalha na Laselva ganha em média 4 mil reais por mês trabalhando sete horas por dia, mas para vender lá exige certa experiência com o público.

“Quando fui para a Laselva, ficava olhando aquele monte de livros, os clientes com suas roupas de marca, peles macias, saudáveis e uma disputa de perfume. Daí, eu olhava para mim que usava uma calça folgada de dez reais e percebia meu mundo distante. Me sentia inferior, mas isso é paranóia porque observei que a maioria destas pessoas é infeliz e mal humorada. A partir daí, surgiu um outro sentimento: o de pena, principalmente daqueles que nem me encaravam. Acho que nunca trataria uma pessoa como se ela não fosse nada. Algumas pessoas me olhavam e ainda me olham como se eu fosse nada, mas aprendi a me impor”.

Rivaldir Júnior, 25 anos, mora com o pai, a mãe e a irmã que faz faculdade de pedagogia. Tem personalidade elétrica como se a cada momento levasse pequenos choques, seus olhos vivos e brilhantes exprimem grande alegria de viver, vaidoso penteia os cabelos loiros claros e sempre usa cinto para dar um toque a mais de elegância. Trabalha há cinco anos com assinatura. “Foi ela que deu um rumo em minha vida”. Apesar disso, a indisciplina faz com que chegue invarialvemente atrasado na Laselva onde trabalha atualmente. Às vezes, duas horas. Entrou na Laselva com sua sacola contendo seu caderno de malho, o celular arranhado e comido pelo cachorro e um perfume para esconder o cheiro do cigarro.

Vanessa o interpelou assim que ele entrou na loja.

-Duas horas de atraso, Rivaldir. Você sabe que não pode.

Rivaldir não tem disciplina, mas vende bem. O problema é que depois de três dias com boas vendas, some até o dinheiro acabar. Com a grana, ajuda em casa e gasta em festas, jogos e cigarros, seu vício. São 14 por dia. “Outro vício que tenho é mulher”. Possui duas tatuadas no corpo com tinta fraca e verde: Uma mexicana no peito e outra no braço.

“Gosto de mulher, mas tenho o maior ciúme de irmão, mas também muito orgulho porque nunca ouvi ninguém dizer que comeu minha irmã. Se ela dá por aí, é bem dado. Mano, uma das coisas que mais queria ter era dinheiro no bolso igual a esses bacanas, mas olha para mim. Tenho cara de vagabundo. Você acha que tenho cara de quê?”

Um de seus maiores sonhos é escrever um livro que vai chamar 'Os Altos e Baixos da Vida', pois já ganhou uma bolsa para cursar Direito, mas logo depois foi preso por agressão e assalto a mão armada. Ficou dois anos na prissão. “Lá aprendi a olhar nos olhos das pessoas e ver quem de fato estar sendo sincero, por isso admiro meu supervisor Moisés porque enquanto muita gente me deu as costas ele levava mistura para minha família e cigarros para mim na cadeia, mas nesse tempo todo eu fui feliz. Sempre lembro do livro de Roberto Shyanshiki "O Sucesso é Ser Feliz" e daquela música do Charlie Brown Jr, que para mim é o refrão de minha vida de vendedor: o maior presente Deus me deu a vida me ensinou a lutar pelo que é meu. Você conhece?”.

Depois de duas horas, Rivaldir já está com três pedidos, pega sua sacolinha com perfume e vai fumar fora do aeroporto. Em seguida, jorra baforradas de um cheiro amadeirado no pescoço e nas mãos. Ao retornar à loja pergunta a Vanessa se está com cheiro de cigarro.

- Não.

Vanessa estava meio chateada porque brigou com o namorido (mistura de namorado com marido) Júnior. Ainda lembrava-se da primeira vez que o viu, ainda nem estava trabalhando com assinaturas. Nessa época trabalhava numa lanchonete. Lembra-se como se fosse hoje. Estava preparando o lanche da mesa 04. Há mais de cinco minutos que os clientes reclamavam. O cheiro de gordura e comida inebriava o ar. Seus cabelos enrolados estavam presos num coque e em volta de sua cabeça usava uma rede para proteger a comida dos cabelos. Seu rosto todo engordurado demonstrava impaciência, pois os clientes já gritavam pedindo o lanche. Limpou a mão no avental molhado e saiu com a bandeja.

Quando baixou os olhos sentiu um frio no peito. Outros olhos a olhava fixamente. Era Júnior que retornou à lanchonete impressionado com aquela garota de 21 anos. Ela sentia a perseguição de seus olhos, mas não poderia ceder, apesar do charme, porque Júnior era vinte anos mais velho e tinha uma filha de sua idade.

Todos os dias os dois conversavam na lanchonete e Júnior começou a levá-la para casa, mas ela nunca o deixou entrar no seu quartinho de pensão onde morava há um ano na Rio Branco. Um quartinho simples, sem muitos móveis e onde só era permitida a entrada das amigas.

Por uns seis meses, Júnior não passou do portão e Vanessa não se decidiu entre seu amor e sua amizade. Ele, cansado de esperar, resolveu ir embora para sua casa no Guarujá. Com medo de perdê-lo, Vanessa resolveu namorá-lo e foram comemorar com um jantar no Shopping Center Norte.

Ela comprou uma sandália, uma calça e uma blusa azul novinhos para o encontro. Estava gelada e tremendo quando avistou Júnior, que também trajava uma blusa azul e nem combinaram nada. Pegaram na mão e passearam. “Meus pés estavam tão suados que desciam o tempo inteiro da sandália. Pedia licença e ia ao banheiro enxugar, mas não resolvia e logo depois estavam descendo de novo me trazendo uma sensação desconfortável. Nunca mais usei as sandálias, mas as guardo como recordação. Depois do passeio fomos jantar um macarrão colorido delicioso, conversamos, rimos e depois nos amamos”.

“Um dia tive uma grande surpresa. Ele me levou num consultório odontológico e entregou um cheque para a secretária. Júnior me deu um dente de presente, um canino de cima que faltava e me fazia rir meio envergonhada, escondendo a boca com as mãos. Ainda não tinha colocado um porque meu dinheiro nunca deu, mas morria de vergonha. Agora sorrio à vontade. Ganhei um sorriso de presente e foi um dos dias mais felizes de minha vida. Foi mais ou menos por aí que comecei a trabalhar com assinatura e a situação melhorou. Na época, tinha os cabelos vermelhos que pintava com papel crepom, morava sozinha pagando aluguel e todas as contas porque sai de casa cedo, pois minha mãe me batia. Hoje ela me pede dinheiro. Tive sorte com assinatura. Vim logo para a Laselva, estou aqui há oito meses e agora ganho dinheiro, uso até o perfume Dolce e Gabbana. Sabe, gosto destas coisas de tiazinha rica”.

No mês de abril o ponto Laselva queimou. Vanessa e Rivaldir voltaram para as ruas.

Nas Lojas Americanas

Em meio a calcinhas e sutiãs, Leonardo aborda clientes. Estava zangado porque não queria trabalhar nas Americanas do Shopping Metrô Tatuapé onde segundo ele “só tem negado”. Mesmo assim, sempre conseguia fazer uns seis contratos, mas nesse dia não estava bem... as pessoas não lhe davam atenção.

Leonardo era o maior “fazedor” de cartões das Lojas C&A, mas nunca conseguiu ganhar muito lá, por isso resolveu ir para a assinatura. Precisava ganhar dinheiro rápido, principalmente porque queria sair da casa dos pais e morar com a namorada, mas naquele dia estava sem pedido. Foi aí que pensou: vou já para a “facul”.

Nas portas das faculdades

Chegando na Uninove, perto da estação São Joaquim, Leonardo pára em frente a porta e encontra o amigo Rodrigo. A noite estava fria, por isso resolveu colocar o casaco.

- Aqui está bom?

- Fiz um pedidinho.

Léo fica sério e espera um jovem de mochila passar.

- Senhor, faz qual curso? Questiona.

- Administração, fala o garoto apressadamente.

Ele aponta o folheto. O garoto pensa que é algo relacionado ao seu curso e vai pegar.

Léo começa:

- Faço Jornalismo na UNIP da Vila Carrão e vim divulgar a campanha universitária para todos que têm algum destes cartões. Se tiver ganha um brinde...

Minutos depois dobra o primeiro contrato do dia e coloca no bolso.

De volta ao escritório

Emerson com a mão no queixo olha em volta à espera dos vendedores que chegam e pegam seus boletos na administração onde colocam o número de contratos vendidos e o valor.

- Produziu bem? Pergunta a todos.

Em volta de sua mesa dois novos vendedores olham timidamente e ele chama alguém para orientá-los.

No elevador escuta-se sorrisos e gritos.

- Terceiroooooooo.

Os boletos vão enchendo a mesa. No ar, um cheiro de cigarro e café. Rodrigo chega triste, pois não ganhou a aposta feita.... mas vida de vendedor é assim mesmo.

- No gás, Rodrigo. No gás. Não pode desanimar, fala Emerson.

Rodrigo senta-se na cadeira e fica olhando uma réstia de luz que passa através da janela e ilumina suas vendas entregues.

*****
Making Of

Em janeiro de 2006 cheguei em São Paulo, depois de me formar em Jornalismo no Piauí, em setembro de 2005. À procura de emprego, na primeira semana tomei conhecimento do trabalho com assinaturas das revistas da Editora Globo ao passar pela rua Barão de Itapetininga, na República. Trabalhei três meses nesta área. Na oportunidade, estive atenta a este mundo revelador de tantas histórias e tantas pessoas fascinantes e fortes. Muitos me contaram suas estórias naturalmente, a outros fiz perguntas já com o intuito de fazer uma reportagem no estilo Jornalismo Literário. Todas as narrativas foram contadas em horário de trabalho, na tranqüilidade do cotidiano, sem maiores pressões. A observação e o “saber ouvir” foram as principais ferramentas usadas neste texto.

Procurei usar descrição de ambientes e pessoas, técnicas vistas nos primeiros dias de aula (Pós-Graduação em Jornalismo Literário) com o Sérgio e depois aprofundadas pelo Renato Modernel. No entanto, sinto que preciso aprimorá-las. Ainda me parecem rústicas e sem graça. Optei pelo uso de diálogos reveladores a fim de incrementar a narrativa.

Como houve imersão procurei exercitar o monólogo interior quando Rodrigo fala da sensação de não vender, mas apesar de ter vivenciado todos os fatos narrados no texto procurei não me envolver. A história se conta... Também tentei usar o cena-a-cena montando cenários diferentes em seqüências horárias...Bom, estamos aqui para aprender e aperfeiçoar talentos... Que venham as críticas!

(escrito em abril de 2007)

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