quinta-feira, 2 de julho de 2009

A invasão das espumas

Edmilson, mais conhecido como “Tic” andava pelas ruas limpas e bem cuidadas sem notar as cores vibrantes de amarelo, azul, rosa, verde dos casarões antigos e que dão à cidade, em meio ao vale, um certo ar colonial. Seus passos estão trôpegos, bebera demais naquele dia 06 de agosto em que a paz da cidade fora quebrada por romeiros vindos de todo o estado e de fora também. A cidade estava fervilhando em frente ao santuário de Bom Jesus.

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Há mais de seis mil anos corro tranquilamente. Fui responsável pela interiorização de São Paulo e do Brasil, indiquei o caminho para o sertão. Minhas águas amarelas e quietas despertaram sonhos de aventura e riqueza, proporcionei lazer e recreação, inspirei amores, sensibilidades poéticas, suportei o transporte de habitantes e mercadorias. Minhas águas eram corredeiras.
Já recebi vários nomes entre eles Anhembi (rio das Perdizes) e Tietê (rio das águas, volumoso). Às minhas margens se formaram cidades. No início do século XVIII, um grupo de pescadores me retirou um tesouro escondido no fundo das águas escuras. Era uma imagem talhada em madeira de Bom Jesus e construíram junto a mim uma capela, e a partir dela, uma cidade Pira (peixe) Pora (pula), Pirapora do Bom Jesus, a 54 km de São Paulo.

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Tic caminhava sem saber, ao certo, onde suas pernas o levariam. De repente, sente um cheiro de ar podre e esgoto. Uma lágrima cai de seu rosto e ele se encaminha para uma ponte azul, baixa e de madeira. Ao longe, vê as luzes da igreja do mosteiro, escuta gritos festivos, olha para o céu e contempla as estrelas ao seu redor.

Pirapora é uma cidade pequena e ribeirinha que se resume às margens do rio, em baixo das janelas correm as águas do Tietê.

Tic olhava entristecido, o olhar absorto, pensou nas comemorações, no senhor morto, no rio morto. Grandes blocos de espuma pareciam envelhecer o rio, com cabelos brancos, uma espuma fétida parecida com chantilly dentro do café, as águas do Tietê são escuras como café. Subiu na madeira azul da pequena ponte e pulou nas águas mal cheirosas e repugnantes.
Estava bêbado, suas narinas aspiravam um odor fétido, mesmo assim ele flutuava nas águas. Foi em frente até resolver parar para descansar. Estava na hora de ir para casa. O Tietê não tirou-lhe a vida.

Levantou-se e foi para casa. Todos nas ruas olhavam para ele, imaginavam o que tinha acontecido, mas não acreditavam. A mulher espantou-se. No dia seguinte, Tic foi para o hospital.

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Deve ter sido por volta de 1950 que minhas águas passaram a ser receptoras de resíduos de casas e indústrias, provocando minha deterioração, fui represado em muitos trechos e eleito à geração de energia elétrica, energia esta que serve de suporte para aqueles que me poluem.

A história tem início em 1899, quando a Light, empresa canadense, recebeu a concessão para explorar os serviços de transportes urbanos na capital paulista. Inicialmente, foi instalado um sistema gerador termo-elétrico, enquanto a usina de Parnaíba era construída. Para isso, era preciso uma grande represa para regularizar a vazão de minhas águas, hipótese afastada, pois o reservatório afetaria a cidade de São Paulo. Em 1908, nova concessão e o rio Guarapiranga, afluente do meu amigo Pinheiros, viria a se transformar na Represa Velha de Santo Amaro, depois chamada de Guarapiranga. A Light conseguiu outras concessões e cerca de trinta anos depois inaugurou-se a Usina de Piratininga, às margens do rio Pinheiros. Meu uso exclusivo para a geração de energia ocasionou enchentes e deixei de ser utilizado para abastecimento das pessoas.

Hoje transporto substâncias sólidas, produtos líquidos e gasosos e muito lixo em suspensão.
Eu nasço limpo e saudável nas encostas da Serra do Mar, em Salesópolis e percorro 1.110 km cortando São Paulo. Ao contrário da maioria dos rios cujas águas correm para o oceano, o meu curso vai para o interior até eu desaguar no rio Paraná na divisa de Mato Grosso do Sul, no município de Itapura. Antes mesmo de eu chegar à metrópole já começam a me maltratar e quando chego à cidade de São Paulo já não existe vida em minhas águas. Recebo esgotos, fezes, urina e sigo padecendo. Minhas águas escuras e de odor forte deixam a capital e seguem rumo ao interior em meio a vales de características rurais. Em muitos trechos as águas ficam insuportáveis até para mim mesmo e as pessoas passam com o dedo no nariz e viram as costas para mim. Isso me magoa muito.

Sigo até a barragem de Pirapora do Bom Jesus onde grandes blocos de espumas se formam provenientes de detergentes. Estes produtos não se decompõem porque tenho pouco oxigênio devido à poluição, mas na movimentação em minhas corredeiras ou em virtude da queda da barragem as águas se oxigenam e enormes blocos de espumas saem pelos meus poros. Também a falta de chuvas no período da tarde ocasiona alta concentração de poluentes que só começa a se desmanchar às 10 horas da manhã quando os raios solares furam as bolhas de espumas.
Será que ainda podem me chamar de rio? Cagam em mim. Eu apodreci. O cheiro de ovo podre é sinal da falta de oxigênio. Estou morto em muitos pontos sem poder respirar.

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Isabel da Costa caminha com a filha Rafaela de 4 anos contornando o Tietê. Lá em baixo, as espumas surpreendem os olhos leigos. Para os dela, nem tanto assim, pois sempre vira o Tietê daquela forma. Quando o vento vinha mais forte se afastava um pouco para as espumas não pegarem na sua pele nem na de Rafaela como aconteceu um dia desses com as roupas no varal. Teve que lavar todas novamente.

Rafaela caminha ao lado da mãe, calada, olhando para frente, iria com Isabel pegar umas cestas básicas que estavam sendo distribuídas na cidade para pessoas carentes na véspera do Natal.
Elas moram nas margens do rio, perto da barragem de Pirapora, mas nunca passou pela cabeça das duas tomar um banho refrescante. A casa construída sobre um barranco tem as costas viradas para o rio.

Isabel e Rafaela de mãos dadas seguem seu caminho. Ao passarem em frente à praça da igreja avistam seu José da Silva que trabalha em uma lanchonete. Umas coxinhas fumegantes acabam de ser preparadas. Moreno, magro, dentes postiços cheios de massa, boina preta na cabeça acende um cigarro Marlboro e levanta fumaça, os olhos úmidos e miúdos espreitam. Chegou na cidade faz 8 anos, foi uma viagem a passeio, mas resolveu ficar definitivamente. Olhando o teto, lembra distante dos comentários dos mais velhos da cidade.

As pessoas banhavam, pescavam peixe, assavam e comiam lá mesmo na margem. As águas eram tão cristalinas que dava para ver os peixes nadarem. Agora esse cheiro que sentimos espanta as pessoas.

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Na praça principal de Pirapora é possível apreciar o tradicional samba de roda, considerado por Mário de Andrade a raiz do samba paulista. Sua romaria é a segunda maior do país, perdendo apenas para a de Aparecida. Em maio de 2003 aconteceu um fenômeno que marcou a história da cidade, não por culpa minha, mas pela ação do homem. Recebo como afluente meus amigos Tamamduateí, que traz os esgotos da região industrial e doméstica do grande ABC, e Pinheiros que me joga a sujeira da região sul de São Paulo.

Como falei minha vazão é controlada para a geração de energia. Em Santana de Parnaíba tem a usina, pouco antes de Pirapora tem uma barragem com desnível de 25 metros para controlar meu nível, pois mais para a frente tem a usina Geradora Rasgão. À noite, abriam muito as comportas da barragem de Pirapora para encher o reservatório da usina Rasgão, por isso as espumas subiam 5 a 7 metros e esbarravam nas estruturas das pontes. Foi em maio de 2003 que a invasão das espumas impediu pessoas de atravessar para o outro lado da cidade e crianças de ir para a escola.

Depois do escândalo nacional a abertura da comporta foi mudada para contornar a altura da espuma. A prefeitura colocou um medidor na ponte e quando a espuma ultrapassar o limite permitido a operadora das usinas pagará uma multa por prejudicar a cidade.

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Alexander William desde 1983 quando era gerente de um posto de gasolina à beira do Tietê acompanha a poluição porque já naquela época os carros que tinham pára-choques cromados eram atacados pelo gás sulfídrico do Rio Tietê. Além disso, mora às margens do rio e já teve a casa invadida pelas espumas. Revoltado, resolveu tirar várias fotos em maio de 2003 sempre às 6h30 da manhã na sua ida ao trabalho e criou o site “A testemunha ocular da história” com fotografias e denúncias.

Ao entrar no site o internauta escuta a música do Repórter Esso, noticiário da década de 60 que William escutava e via na televisão em tempos de infância, onde o slogam era Testemunha Ocular da História, que ele ao longo destes anos passou a ser. William recebe alunos de faculdades e de escolas e mostra a realidade em que está inserido.

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Magdiel Oliveira Rodrigues e Douglas brincam na rua “furacão fervendo” no bairro Jardim de Bom Jesus. Eles dão pulo mortal entre os buracos formados na rua de barro arrodeada de capim e lixo que cai diretamente no rio. O pai de Magdiel cavou um caminho para longe para que as águas das casas que escorrem não passem em frente à sua, mas de qualquer forma ela cai dentro do rio.

Magdiel e Douglas discutiam sobre o futuro do Tietê.
- Eu queria me banhar nele, mas acho que não vou, disse Douglas.
- Depende de cada um de nós. Se cada um se conscientizar, o Tietê ainda vai se salvar.
O sol estava forte e eles foram pegar uns gelinhos de manga. Ao lado, o Tietê corria quieto e no alto da ladeira descia um homem baixo e moreno.
- Tio Tic, gritou Magdiel.
Tic acenou com a mão e se aproximou com olhos interrogadores em seguida desviados para aquele que o teve nos braços.

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Making Of

A idéia inicial era fazer uma matéria sobre a despoluição do rio Tietê. Tudo começou quando vi uma matéria na TV Cultura e a Clarisse Goldeberg me emprestou um livro da ONG S.O.S Mata Atlântica, que me serviu de pesquisa. O que mais me chamou a atenção foram as espumas que se formam depois de Santana de Parnaíba e que cobre todo o rio em Pirapora do Bom Jesus, daí resolvi ir lá para ver como as pessoas conviviam com esta realidade.

Visitei a cidade no começo de dezembro onde conheci os personagens e as espumas. Realmente fiquei bastante chocada de como a ação do homem pode provocar fenômenos como esses, por isso resolvi enfocar minha matéria apenas em Pirapora do Bom Jesus e nas espumas.
Na hora de estruturar o texto dei vida ao rio para que ele mesmo contasse suas dores e seus problemas intercalando com personagens da cidade que convivem e têm uma história com o Tietê.

Na verdade, senti dificuldades na hora de escrever o texto e não gostei do resultado final. Travei um pouco na hora de estruturar as histórias. Contudo, foi bastante significativo porque houve muita pesquisa, talvez tenha até sido por isso, talvez minha dificuldade seja trabalhar com as características literárias desejáveis com pesquisas históricas e numéricas.

(Reportagem escrita em março de 2007)

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