quinta-feira, 2 de julho de 2009

Vendedores

Emerson chega ao escritório e senta-se em sua mesa, a primeira do lado esquerdo, em frente à janela que dá para a rua Barão de Itapetininga, na República. Coloca as mãos no queixo apoiadas na mesa e, em seguida, olha o relógio. “Estão atrasados”, pensa.

Corpo de rapaz, pernas e braços finos, baixo, magro, a boca pequena contrasta com a voz firme e determinada, muitas vezes confundida com irritação, por isso tem fama de bravo. Seu sorriso é meio desconfiado, parecendo forçado no rosto marcado por traços orientais. A pele morena com pouco pêlo, os cabelos arrepiados, as roupas e sapatos de marca e o brinquinho branco e brilhante na orelha lhe dá um ar jovial.

Preocupado com a saúde e a forma, freqüenta academia de ginástica e toma suco de laranja todos os dias. Às quintas-feiras joga uma bolinha para desestressar do trabalho, mas às vezes torce o pé e fica dias mancando. Seus olhos estão sempre brilhando como uma chama alimentada incessantemente e considera a informação fundamental para o crescimento pessoal e profissional, por isso sempre lê, participa de cursos e possui assinatura da revista Venda Mais.

A vontade de vencer na vida o torna focado em torno de seus objetivos traçados a curto, médio e longo prazo. Em longo-prazo, pretende se aposentar aos quarenta e cinco anos para viajar e curtir a vida. Acredita em Deus e possui o nome de Jesus gravado em uma pulseira que usa no braço esquerdo.

Emerson, anos atrás, viveu em um barraco e era camelô. Vendia relógios despertadores nas ruas de São Paulo, até que descobriu a assinatura de revistas da maneira mais inusitada. Ouviu um de seus clientes comentar que ia trabalhar neste ramo para ganhar muito dinheiro. Poderia comprar apartamentos, casas, carros, ter dinheiro no bolso para gastar à noite. Pediu o endereço e compareceu ao escritório no dia seguinte.

“Comecei a trabalhar com assinatura e descobri que com um contrato vendido ganhava mais do que em um dia inteiro vendendo relógios despertadores. Era lá mesmo o meu lugar. No primeiro mês não consegui vender bem, mas depois comecei a estourar. No começo passei por muitas dificuldades. Saía de casa seis horas da manhã e só chegava meia-noite. Meu almoço era cachorro quente. Durante um tempo nem podia ver cachorro quente na minha frente. Depois evolui para o prato feito, que dividia com um amigo afim de economizar, e depois para o comercial que também era dividido.”

“Gostava de trabalhar de terno, gravata e com uma pasta, pois sempre invadia congressos, feiras e festas onde era confundido com os convidados. Aproveitava para abordar e vender assinaturas. Também invadia prédios comerciais chiques e, a partir da observação, conseguia saber com que banco os funcionários trabalhavam. Chegava lá e me apresentava como representante do banco e procurava pela Maria, que teria sido sorteada - nessas repartições sempre tem uma Maria. Dizia que ela ganhara um brinde do banco e vendia minhas assinaturas. Depois conseguia dela os nomes dos colegas. Eu vendia muito. O dinheiro começou a cair no bolso e apesar de ser de origem pobre tive juventude de playboy. Comprei jet sky para sair com as gatinhas, carro, apartamento para mim e para minha mãe. Pouco depois de comprar o primeiro carro, ele foi roubado pelos vizinhos que não aceitavam minha prosperidade. Eles se perguntavam: Mas como esse moleque tem dinheiro se não é envolvido com drogas? O roubo do carro me abalou, mas nunca pensei em desistir. Comecei a trabalhar no gás e logo depois comprei outro e me mudei de lá”.

Emerson gosta de contar sua história aos vendedores para estimulá-los a trabalhar. Todos ouvem atentos. Ele olha mais uma vez no relógio porque muitos ainda não chegaram e ao voltar sua atenção para a porta seu olhar segue uma garota loira e sensual que entra no escritório.

- Vai trabalhar hoje? Pergunta.
- Vou.
- Você sabe que não pode trabalhar de saia.
- Mas eu vou trabalhar na rua, responde a garota em tom de desafio.
- Não vai não. Você sabe que não pode. Faz isso para me irritar. Você não tem massa encefálica?

A cena parece ser comum no escritório, pois todos continuam sua conversa normalmente como se fizesse parte da rotina. E faz.Logo depois, o casal já está de bem. A loira sensual, esposa de Emerson, chama-se Daiana e minutos depois do acontecido já cochicha e sorri nos ouvidos do esposo. Eles se conheceram na assinatura, ela engravidou cedo e juntos tiveram uma filha chamada Hana, que hoje tem cinco anos. Daiana, apesar da insistência, não foi trabalhar, mas não é só ele que é ciumento. “Ela tem um ciúme do caralho. Toda vez que tinha que participar de feiras fora da cidade ou levava ela junto ou nossa filha”.

Emerson construiu um patrimônio vendendo assinaturas de revistas e hoje com trinta anos possui sociedade na empresa Oficina de Vendas, um dos escritórios que representa a Editora Globo em São Paulo e que possui mais de 70 vendedores.

Cheiro de Café

Os vendedores chegam aos poucos no edifício La Royale Nº 221 da Rua Barão de Itapetininga, saúdam com algazarra o recepcionista Hugo e sobem com o ascensorista JR. Sempre gritam: Terceeeeeeeeiro! Às 8h30 o burburinho aumenta. O cheiro do cigarro torna-se forte e a fumaça fica no ar como nuvens no céu. As três garrafas de café colocadas no canto esquerdo do escritório esvaziam-se aos poucos.

Todo o terceiro andar é ocupado pelo Oficina de Vendas. Do lado direito, encontra-se uma sala com a recepção onde três cadeiras ficam dispostas próximas à parede, espremidas junto a um estande de feira e mais à frente, separada por um balcão e uma parede de vidro, fica a administração, onde os vendedores pegam contratos de vendas, conferem seus créditos (quanto caiu na conta bancária, pois recebem toda semana às segundas-feiras), pegam o boleto para preencher com os dados das vendas do dia anterior e a ajuda de custo dada pelo supervisor aos vendedores que estão começando. Essa ajuda é dada por, no máximo, um mês e varia de cinco a dez reais.

Do lado esquerdo, uma imensa sala com várias mesas dispostas e cadeiras em redor. São as mesas dos supervisores de vendas e as cadeiras dos vendedores. Cada mesa é um pequeno grupo que faz parte de um grupão que tem o objetivo de superar-se a cada dia.

Nas paredes brancas, certificados de participação de Emerson em diversos cursos e palestras e vários quadros com palavras de incentivo como “Acredite em seus sonhos”, “Abaixo o mau humor!”, “O sucesso só vem antes do trabalho em dicionários”. Atrás de cada mesa do supervisor, existe um quadro acrílico com a ordem de venda de cada vendedor. Em um canto separado, perto da mesa de Emerson, o quadro das melhores equipes onde a sua está invariavelmente entre as melhores. Esses quadros são observados e dissecados com atenção todas as manhãs pelos vendedores, sempre querendo estar no topo. À esquerda desta sala, fica o auditório onde acontece o treinamento de novos vendedores, a administração interna, a sala de Emerson e de seu sócio Barros, copa e banheiros.

A animação toma conta do escritório. Quem chega triste logo é contagiado pela energia positiva do ambiente. No entanto, as conversas giram em torno das vendas do dia, das metas, dos objetivos, dos problemas e casos familiares. Pouco ou nada se fala sobre política, economia e cultura.

Cada supervisor precisa motivar seus vendedores a vender bem, a procurar motivos para ser o campeão do dia. Além da equipe de Emerson, existe a de Barros, Renata, Edo, Moisés e Peixe. Depois da conversa com os supervisores, os vendedores saem animados do escritório com pacotes de revistas nas mãos.

- Quero um barão hoje, Rodrigo. Grita Emerson de sua mesa
Um barão, na linguagem de assinatura, quer dizer mil reais.
- Se me trouxer um barão, ganha um premiozinho.

Antes de trabalhar, Rodrigo, como a maioria dos vendedores, passa no Café Cia dos Lanches, uma lanchonete que fica próxima ao escritório, ainda na República na rua 24 de maio. Em geral, os vendedores são jovens, têm entre 15 a 24 anos e para economizar uma passagem de metrô, costumam ir para a estação São Bento onde a fiscalização é menor e eles quase sempre conseguem catracar (empurram a catraca para trás e abrem espaço para passar) ou roletar (um paga, mas não passa definitivamente, só abre espaço para o outro) Neste caso, os dois dividem uma passagem de dois reais e os olhares censuradores e assustados das pessoas.

“Somos VIP, fia. Aqui ninguém paga nada, não. V-I-P. Uma vez o fiscal viu a gente e saiu correndo atrás, mas demos sorte porque o metrô ia chegando. Entramos e ficamos rindo da cara dele, mas se ele pega, era cacete”.

Primeiro dia de um Bié

Chama-se Bié todo vendedor que está iniciando.

Quando Rodrigo lembra do primeiro dia de trabalho ainda sente uma ponta daquela angústia da incerteza do que esperar porque não é destino fácil. As recompensas são grandes se se tem êxito, mas pouquíssimos têm êxito. Os obstáculos são importantes em vendas, mas como em todas as carreiras, a vitória só vem depois de muita luta e de inúmeras derrotas. As primeiras dúvidas são: por que as pessoas não me dão ouvido? Por que se afastam? O que devo dizer quando dizem que não podem pagar? Que medo é esse que me domina ao abordar as pessoas?

“Quando você não consegue vender e fica zerado o dia inteiro logo vem à cabeça a pressão do seu supervisor e todas as contas que estão em casa para pagar. Nesse dia você paga para trabalhar e ouviu tantos nãos, tantos nãos que fica meio zonzo e manda todos os clientes para aquele lugar. Aí é que não vende mesmo porque passa tudo que acontece no seu interior para o cliente. Você precisa estar bem, entusiasmado e com pensamento positivo. Quando não vendo sinto um grande vazio, uma insatisfação, um buraco no meio da alma que me diminui diante dos clientes e faz com que a vida perca o sentido. Me sinto um fracassado, um incapaz, frustrado”.

No primeiro dia Rodrigo não vendeu.

Pedras e Balões

No meio da assinatura, os clientes que não compram ou que colocam muitas objeções são chamados de “pedra”. “Esse cara é muito pedra” e os que fazem assinatura sem questionar são chamados “balão”. “Peguei um balãozão”. Os vendedores vivem num mundo de pedras e balões, onde as pedras podem tirar a auto-estima. Muitas pessoas se afastam correndo quando vêem os vendedores, passam indiferentes ao chamado como se não estivessem escutando e há os que atacam: “Vocês estão enrolando as pessoas, clonando cartão”. O momento mais difícil de vender na rua é na hora de pedir o cartão de crédito porque a maioria das pessoas fica com medo e desconfiada quando o vendedor começa a decalcar – pegar os números, nome e data de validade usando papel carbonado- por isso, os vendedores sempre usam uma brincadeira.

- O senhor já conhece a tecnologia de ponta?
- Como assim? Pergunta o cliente.
- Ponta do dedo. O vendedor sorri enquanto raspa o cartão do cliente na folha carbonada usando as unhas ou uma caneta.

Na rua

Rodrigo, 16 anos, alto, magro, voz fina e meiga, faz o segundo ano do Ensino Médio- apesar de dizer que faz o terceiro- fuma e às vezes falta na escola para poder apresentar uma venda a mais no dia seguinte. Faz isso escondido do supervisor Emerson. Curioso, pergunta o porquê de todas as coisas numa atitude de grande interesse pela vida. Nesse dia, não pegou o metrô na São Bento porque descobriu “um pico da hora para trampar”. Pico é um local bom de vendas. Geralmente, os vendedores saem para trabalhar na rua em dois ou três. Nunca sozinhos porque fica mais difícil de abordar e mais fácil dispersar. Rodrigo pegou um ônibus com Vivi e foi trabalhar na Universidade Paulista, mas chegando lá os seguranças falaram que ele não podia ficar. “Queimou o ponto”. Diz-se que o ponto está queimado quando o gerente do banco ou da loja e o diretor das faculdades não permitem o trabalho com assinaturas. Isso acontece principalmente porque os vendedores usam o nome da instituição.

- Falou com a Márcia dentro da UNIP?
- Viram a faixa? Os alunos ganham brinde. É só pegar aqui ó.

Já era uma hora da tarde. O sol estava forte. Rodrigo e Vivi amarraram a blusa de frio na cintura e tiveram que caminhar meia hora até o banco mais próximo.

- Agora a gente tem que trabalhar no gás porque o primeiro pico queimou e a gente perdeu tempo.
- Beleza.
- Olha, lá vem um balão. Vou trancar ele agora.

Rodrigo passou a mão no rosto e abordou um jovem que saía do Banco Real em companhia de sua mãe.

- Já pegou o brinde, senhor?
- Todos que vêm ao Banco Real hoje que possuem o cartão Mastercard ou Visa ganham um brinde. Qual é o seu?

O cliente, meio desconfiado, respondeu:

- Mastercad.

Rodrigo pega uma das revistas que tinha deixado num canto próximo e entrega ao senhor.

-Parabéns. Então ganha o brinde e participa da Campanha Nacional de Incentivo a Leitura. O senhor assistiu ao Fantástico domingo?
-Não.
- Tava passeando, heim? Questionou em tom simpático.

O cliente mais à vontade frente às brincadeiras se desarma.

- ÉÉÉÉÉÉÉ......, responde.

Rodrigo investe:

- Passou uma matéria que de cada dez brasileiros, só dois tem o hábito à leitura, por isso a Editora Globo lançou a campanha de leitura para todos que têm o Visa ou Mastercad, que patrocinam a iniciativa.

Entrega um folheto com fotografias de revistas.

- Daqui, escolhe duas publicações que mais gosta. Vai receber em casa por um ano sem pagar assinatura.

O cliente meio tonto e confuso devido a pressa e ao envolvimento com o vendedor aponta duas revistas, uma mensal e outra semanal.

Rodrigo pega seu caderno de malho para convencer o cliente a ficar com a assinatura. “Ninguém sai de casa pensando. Oba, hoje eu vou fazer uma assinatura”. No treinamento de vendas, o malho é uma argumentação de convencimento utilizada pelo vendedor, que aprende a fechar a venda sem dar espaço para objeções. Todas as palavras e perguntas são direcionadas ao objetivo do vendedor, que é “trancar” a venda. Todas as objeções têm respostas, entre elas as mais óbvias como “Não tenho tempo para ler”. No entanto, os clientes também são bem criativos para se afastar da compra. Vira um jogo, onde ganha quem tem mais argumentos e simpatia.

Muitos vendedores usam o malho de maneira correta, outros muitos inventam histórias fantásticas dizendo que os cartões estão pagando assinaturas e que a pessoa só vai receber as revistas em casa. Ou que eles só pegam os dados pessoais e do cartão e depois a Editora vai ligar para confirmar a participação na Campanha. Muita gente acredita e um mês depois chega a fatura com a cobrança. A maioria faz isso porque ganha por comissão encima das vendas do dia. Essa prática chama-se “bucha” e é abominada por muitos vendedores. “Caí duas vezes no mundo da bucha, mas depois me senti muito mal porque pensei em alguém de minha família sendo enganado. Agora só faço venda limpa e não caio mais no mundo da enganação”. Se a assinatura for cancelada em até três meses o vendedor paga estorno e tem que devolver o dinheiro recebido.O problema é que para cancelar o cliente tem que ouvir muitas musiquinhas ao telefone até conseguir falar com a Central de Atendimentos da Editora.

Rodrigo passa a mão no rosto para limpar o suor e começa a malhar o cliente.

- Olha só que legal esta campanha. O senhor vai receber essas duas revistas por um ano e não vai pagar a assinatura porque o cartão já pagou. Só vai contribuir com o custo reduzido de capa da campanha. Se fosse fazer assinatura das duas pagaria quihentos e dezesseis reais e oitenta centavos. Participando da campanha esse valor fica só quarenta e quatro reais. O que é melhor: só para daqui a 30 dias. Vem em seis vezes e o senhor recebe as duas revistas por um ano. Hoje, eu só faço a parte social que é pegar o nome e o endereço. A única exigência é que prefira receber as publicações em casa para não ter extravio de correspondência. O senhor mora em rua ou
avenida?
- Rua.

Rodrigo pega o contrato de vendas de novas assinaturas de dentro do bolso de trás da calça e pergunta.

- Qual o nome da rua?

O cliente vai responder, mas pára de repente.

-Mas acho que não vou querer... responde vacilante.

Percebendo a dúvida do cliente, Rodrigo encara firme.

- Então o senhor não entendeu. Vai receber as duas revistas por um ano em casa com conforto e segurança. Informação, cultura, lazer e entretenimento. Todo mundo está participando. Hoje é só nome e endereço. Qual é mesmo o nome da rua?

O cliente se rende.

Depois da venda trancada, Rodrigo beija o contrato. O primeiro do dia. Tinha que fazer pelo menos mais três para ganhar o prêmio prometido por Emerson. Na rua, ganha comissão de 12%, mas não tem carteira assinada e paga transporte e alimentação. Fazendo mil reais, ganha cento e vinte reais em um único dia de trabalho se as vendas não negarem. As vendas negam quando o cartão do cliente não tem mais limite. Neste caso, a venda é passada mais cinco semanas e se mesmo assim não passar, é devolvida ao vendedor.

Em outro ponto da cidade de São Paulo, Fátima com seu jeito maroto e largadão caminha lentamente ao encontro do cliente como se cada passo lhe custasse bastante. Passou o dia inteiro sem vender e ia tentar novamente.

Certa vez quando estava zerada foi até ao amigo pipoqueiro com quem fez amizade na porta do supermercado Wall Mart de Osasco e ofereceu-lhe revistas de brinde caso ele tivesse algum cartão que tava patrocinando a campanha de leitura. Fátima buchou o pipoqueiro. De outra vez ganhou dois pares de tênis. Na hora do almoço, encontrou um senhor chamado Pedro que sempre fazia compras no Wall Mart. O chamou e falou da campanha. Pedro não quis, por isso ela resolveu fazer uma colação.

- Então faz assim: leva essas revistas e contribui com o valor do coração para meu almoço.

- Eu pago um lanche para você, respondeu Pedro. “Não quero mesmo essas revistas antigas”, complementou

Entraram no shopping Osasco e ao passar em frente à sapataria World Tennis, Fátima fala tristemente.

- Tava precisando de um tênis, mas não tenho dinheiro para comprar.

- Escolhe um de presente.

Fátima mal continha a empolgação.

- Pode ser esse?

Apontou um Nike de oitocentos reais. Pedro respondeu afirmativamente com a cabeça.

Pelo visto dinheiro não era problema. Fátima, esperta, retrucou.

- Então, vou levar dois pares Adidas. Dá o mesmo valor.

Chamou a vendedora no canto e falou:

- Separa um par número 42 que vou presentear meu esposo.

Alguns vendedores fazem colação na rua. Vendem as revistas antigas entregues no escritório para chamar atenção do brinde. A maioria tira o dinheiro do transporte e da comida, outros conseguem tirar o da manicure, da água, luz, de uma calça nova.... Há casos de pessoas que abandonaram a assinatura para viver só de colocação. Por conta disso, Emerson resolveu limitar as revistas para quem vai para a rua. No entanto, vendedor sempre dá um jeito e acaba pegando mais com os que levam revistas para os pontos.

Na Laselva

Um dos pontos mais cobiçados pelos vendedores de assinaturas e pelas editoras é a livraria Laselva no Aeroporto de Congonhas, pois o público tem dinheiro e os cartões têm limite alto. Esse é o local mais vigiado e nunca, mais nunca mesmo se pode buchar. Quem trabalha na Laselva ganha em média 4 mil reais por mês trabalhando sete horas por dia, mas para vender lá exige certa experiência com o público.

“Quando fui para a Laselva, ficava olhando aquele monte de livros, os clientes com suas roupas de marca, peles macias, saudáveis e uma disputa de perfume. Daí, eu olhava para mim que usava uma calça folgada de dez reais e percebia meu mundo distante. Me sentia inferior, mas isso é paranóia porque observei que a maioria destas pessoas é infeliz e mal humorada. A partir daí, surgiu um outro sentimento: o de pena, principalmente daqueles que nem me encaravam. Acho que nunca trataria uma pessoa como se ela não fosse nada. Algumas pessoas me olhavam e ainda me olham como se eu fosse nada, mas aprendi a me impor”.

Rivaldir Júnior, 25 anos, mora com o pai, a mãe e a irmã que faz faculdade de pedagogia. Tem personalidade elétrica como se a cada momento levasse pequenos choques, seus olhos vivos e brilhantes exprimem grande alegria de viver, vaidoso penteia os cabelos loiros claros e sempre usa cinto para dar um toque a mais de elegância. Trabalha há cinco anos com assinatura. “Foi ela que deu um rumo em minha vida”. Apesar disso, a indisciplina faz com que chegue invarialvemente atrasado na Laselva onde trabalha atualmente. Às vezes, duas horas. Entrou na Laselva com sua sacola contendo seu caderno de malho, o celular arranhado e comido pelo cachorro e um perfume para esconder o cheiro do cigarro.

Vanessa o interpelou assim que ele entrou na loja.

-Duas horas de atraso, Rivaldir. Você sabe que não pode.

Rivaldir não tem disciplina, mas vende bem. O problema é que depois de três dias com boas vendas, some até o dinheiro acabar. Com a grana, ajuda em casa e gasta em festas, jogos e cigarros, seu vício. São 14 por dia. “Outro vício que tenho é mulher”. Possui duas tatuadas no corpo com tinta fraca e verde: Uma mexicana no peito e outra no braço.

“Gosto de mulher, mas tenho o maior ciúme de irmão, mas também muito orgulho porque nunca ouvi ninguém dizer que comeu minha irmã. Se ela dá por aí, é bem dado. Mano, uma das coisas que mais queria ter era dinheiro no bolso igual a esses bacanas, mas olha para mim. Tenho cara de vagabundo. Você acha que tenho cara de quê?”

Um de seus maiores sonhos é escrever um livro que vai chamar 'Os Altos e Baixos da Vida', pois já ganhou uma bolsa para cursar Direito, mas logo depois foi preso por agressão e assalto a mão armada. Ficou dois anos na prissão. “Lá aprendi a olhar nos olhos das pessoas e ver quem de fato estar sendo sincero, por isso admiro meu supervisor Moisés porque enquanto muita gente me deu as costas ele levava mistura para minha família e cigarros para mim na cadeia, mas nesse tempo todo eu fui feliz. Sempre lembro do livro de Roberto Shyanshiki "O Sucesso é Ser Feliz" e daquela música do Charlie Brown Jr, que para mim é o refrão de minha vida de vendedor: o maior presente Deus me deu a vida me ensinou a lutar pelo que é meu. Você conhece?”.

Depois de duas horas, Rivaldir já está com três pedidos, pega sua sacolinha com perfume e vai fumar fora do aeroporto. Em seguida, jorra baforradas de um cheiro amadeirado no pescoço e nas mãos. Ao retornar à loja pergunta a Vanessa se está com cheiro de cigarro.

- Não.

Vanessa estava meio chateada porque brigou com o namorido (mistura de namorado com marido) Júnior. Ainda lembrava-se da primeira vez que o viu, ainda nem estava trabalhando com assinaturas. Nessa época trabalhava numa lanchonete. Lembra-se como se fosse hoje. Estava preparando o lanche da mesa 04. Há mais de cinco minutos que os clientes reclamavam. O cheiro de gordura e comida inebriava o ar. Seus cabelos enrolados estavam presos num coque e em volta de sua cabeça usava uma rede para proteger a comida dos cabelos. Seu rosto todo engordurado demonstrava impaciência, pois os clientes já gritavam pedindo o lanche. Limpou a mão no avental molhado e saiu com a bandeja.

Quando baixou os olhos sentiu um frio no peito. Outros olhos a olhava fixamente. Era Júnior que retornou à lanchonete impressionado com aquela garota de 21 anos. Ela sentia a perseguição de seus olhos, mas não poderia ceder, apesar do charme, porque Júnior era vinte anos mais velho e tinha uma filha de sua idade.

Todos os dias os dois conversavam na lanchonete e Júnior começou a levá-la para casa, mas ela nunca o deixou entrar no seu quartinho de pensão onde morava há um ano na Rio Branco. Um quartinho simples, sem muitos móveis e onde só era permitida a entrada das amigas.

Por uns seis meses, Júnior não passou do portão e Vanessa não se decidiu entre seu amor e sua amizade. Ele, cansado de esperar, resolveu ir embora para sua casa no Guarujá. Com medo de perdê-lo, Vanessa resolveu namorá-lo e foram comemorar com um jantar no Shopping Center Norte.

Ela comprou uma sandália, uma calça e uma blusa azul novinhos para o encontro. Estava gelada e tremendo quando avistou Júnior, que também trajava uma blusa azul e nem combinaram nada. Pegaram na mão e passearam. “Meus pés estavam tão suados que desciam o tempo inteiro da sandália. Pedia licença e ia ao banheiro enxugar, mas não resolvia e logo depois estavam descendo de novo me trazendo uma sensação desconfortável. Nunca mais usei as sandálias, mas as guardo como recordação. Depois do passeio fomos jantar um macarrão colorido delicioso, conversamos, rimos e depois nos amamos”.

“Um dia tive uma grande surpresa. Ele me levou num consultório odontológico e entregou um cheque para a secretária. Júnior me deu um dente de presente, um canino de cima que faltava e me fazia rir meio envergonhada, escondendo a boca com as mãos. Ainda não tinha colocado um porque meu dinheiro nunca deu, mas morria de vergonha. Agora sorrio à vontade. Ganhei um sorriso de presente e foi um dos dias mais felizes de minha vida. Foi mais ou menos por aí que comecei a trabalhar com assinatura e a situação melhorou. Na época, tinha os cabelos vermelhos que pintava com papel crepom, morava sozinha pagando aluguel e todas as contas porque sai de casa cedo, pois minha mãe me batia. Hoje ela me pede dinheiro. Tive sorte com assinatura. Vim logo para a Laselva, estou aqui há oito meses e agora ganho dinheiro, uso até o perfume Dolce e Gabbana. Sabe, gosto destas coisas de tiazinha rica”.

No mês de abril o ponto Laselva queimou. Vanessa e Rivaldir voltaram para as ruas.

Nas Lojas Americanas

Em meio a calcinhas e sutiãs, Leonardo aborda clientes. Estava zangado porque não queria trabalhar nas Americanas do Shopping Metrô Tatuapé onde segundo ele “só tem negado”. Mesmo assim, sempre conseguia fazer uns seis contratos, mas nesse dia não estava bem... as pessoas não lhe davam atenção.

Leonardo era o maior “fazedor” de cartões das Lojas C&A, mas nunca conseguiu ganhar muito lá, por isso resolveu ir para a assinatura. Precisava ganhar dinheiro rápido, principalmente porque queria sair da casa dos pais e morar com a namorada, mas naquele dia estava sem pedido. Foi aí que pensou: vou já para a “facul”.

Nas portas das faculdades

Chegando na Uninove, perto da estação São Joaquim, Leonardo pára em frente a porta e encontra o amigo Rodrigo. A noite estava fria, por isso resolveu colocar o casaco.

- Aqui está bom?

- Fiz um pedidinho.

Léo fica sério e espera um jovem de mochila passar.

- Senhor, faz qual curso? Questiona.

- Administração, fala o garoto apressadamente.

Ele aponta o folheto. O garoto pensa que é algo relacionado ao seu curso e vai pegar.

Léo começa:

- Faço Jornalismo na UNIP da Vila Carrão e vim divulgar a campanha universitária para todos que têm algum destes cartões. Se tiver ganha um brinde...

Minutos depois dobra o primeiro contrato do dia e coloca no bolso.

De volta ao escritório

Emerson com a mão no queixo olha em volta à espera dos vendedores que chegam e pegam seus boletos na administração onde colocam o número de contratos vendidos e o valor.

- Produziu bem? Pergunta a todos.

Em volta de sua mesa dois novos vendedores olham timidamente e ele chama alguém para orientá-los.

No elevador escuta-se sorrisos e gritos.

- Terceiroooooooo.

Os boletos vão enchendo a mesa. No ar, um cheiro de cigarro e café. Rodrigo chega triste, pois não ganhou a aposta feita.... mas vida de vendedor é assim mesmo.

- No gás, Rodrigo. No gás. Não pode desanimar, fala Emerson.

Rodrigo senta-se na cadeira e fica olhando uma réstia de luz que passa através da janela e ilumina suas vendas entregues.

*****
Making Of

Em janeiro de 2006 cheguei em São Paulo, depois de me formar em Jornalismo no Piauí, em setembro de 2005. À procura de emprego, na primeira semana tomei conhecimento do trabalho com assinaturas das revistas da Editora Globo ao passar pela rua Barão de Itapetininga, na República. Trabalhei três meses nesta área. Na oportunidade, estive atenta a este mundo revelador de tantas histórias e tantas pessoas fascinantes e fortes. Muitos me contaram suas estórias naturalmente, a outros fiz perguntas já com o intuito de fazer uma reportagem no estilo Jornalismo Literário. Todas as narrativas foram contadas em horário de trabalho, na tranqüilidade do cotidiano, sem maiores pressões. A observação e o “saber ouvir” foram as principais ferramentas usadas neste texto.

Procurei usar descrição de ambientes e pessoas, técnicas vistas nos primeiros dias de aula (Pós-Graduação em Jornalismo Literário) com o Sérgio e depois aprofundadas pelo Renato Modernel. No entanto, sinto que preciso aprimorá-las. Ainda me parecem rústicas e sem graça. Optei pelo uso de diálogos reveladores a fim de incrementar a narrativa.

Como houve imersão procurei exercitar o monólogo interior quando Rodrigo fala da sensação de não vender, mas apesar de ter vivenciado todos os fatos narrados no texto procurei não me envolver. A história se conta... Também tentei usar o cena-a-cena montando cenários diferentes em seqüências horárias...Bom, estamos aqui para aprender e aperfeiçoar talentos... Que venham as críticas!

(escrito em abril de 2007)

Diferente, mas não indiferente

"Eles se dizem os sábios da humanidade. Mas só enxergam o amor próprio e o nariz enquanto os poetas de rua contra o Império do Terror só pregam cultura e amor". (letra reggae-circuito 10).

Moreti acordou suado. A noite estava quente, sua camisa pregada às costas, revirou-se na cama, mexeu os pés revirando o lençol. Não sabia se estava acordado ou sonhando. O líder guerrilheiro Che Guevara estava sentado ao seu lado na poltrona fumando seu charuto cubano. Moreti aspirou a fumaça, esfregou os olhos. Não gostava do cheiro do charuto. Guevara sorriu para ele e falou:

- Vá para São Paulo reunir o maior número de guerrilheiros possível e faça a Revolução!

Em 1998, Moreti saiu do Rio de Janeiro e chegou em São Paulo, cidade que diz não gostar porque possui a elite mais conservadora do Brasil, plantadores de café, que não reconhecem Getúlio Vargas. "Em São Paulo não existe nenhuma homenagem a Getúlio, nem mesmo um nome de rua", além do mais a terra da garoa não possui mar onde ele possa se sentir mais livre de vez em quando. Só estar aqui para cumprir sua missão e atender ao pedido do ídolo.

Em 14 de agosto de 1999, fundou a AFAPRAZ, Associação dos Freqüentadores da Praça Ramos de Azevedo, que abriga o Teatro Municipal de São Paulo. Há oito anos, por volta das 13 horas, Moreti chega na praça Ramos de Azevedo com sua bicicleta azul e seu mochilão desbotado e rasgado com uma bandeira de cuba pintada no bolso da frente. Na bagagem, uma mesa móvel, bandeiras de Cuba e dos Estados Unidos, livros... na bike, um megafone amarrado com barbante e na cabeça muitas idéias. Começa a montar sua barraca em frente às Casas Bahia no Vale do Anhangabaú, onde grita "Casas Bahia não tem na Bahia". Recobre a mesa móvel com um plástico azul e surrado, coloca uns livros sebentos em cima como a biografia de Che Guevara, 'Os homens do Cremlin -Os grandes nomes de nossa época', A Coluna Prestes de Nelson Werneck Sodré, Guerra Civil de Hans Magnus Enzenberger, além de cds do jornalista e produtor Ted Silva, uma pasta com todas as matérias que já saíram sobre ele em revistas e jornais e um caderno de assinaturas, onde só quem assina é quem tem o espírito de indignação.


Prende entre dois postes de iluminação, como se fosse um varal, papelões com suas frases de ordem: "Por minhas idéias luto até as últimas conseqüências", "A geração de 80 é paga pau, usa piercing e tatuagem, mas nunca leu Bertold Brecht", "Todo país desenvolvido passou por uma guerra civil". As pessoas param e lêem suas frases coerentes e indignadas. Saem sorrindo, pensativas, balançando as cabeças ou indiferentes. Ele pega uma bandeira suja e surrada dos Estados Unidos onde no lugar das estrelas encontra-se uma caveira. Coloca no chão para que seja pisada e ao lado encosta um prato prateado e meio sujo, onde pigam umas moedas. "Eu vivo de migalhas, coloquem umas moedinhas aqui".

Atrás de sua banca, prende fotografias e posters de Osama Bin Laden, Saddam Hussein, venerados por terem enfrentado o Grande Império. "Vamos derrubar todos os prédios da Ilha de Manhattan e devolver aos cherokees. Viva Osama Bin Laden".

Um senhor alto, branco, cabelos grisalhos passa olhando, pára e faz careta. Moreti olha para ele e continua gritando com o megafone na mão e voz firme e enérgica.

- Viva Osama!!! Vamos fumar maconha. Não fumem tabaco, fumem maconha. Olhem o que essa sociedade estar fazendo com nossas crianças. São verdadeiras legiões de cheira-cola e ninguém se importa.

O senhor olha para Moreti de alto a baixo com desdém e dispara:

- Você é um louco. Devia ser jogado do Viaduto do Chá. Sai praguejando.

Moreti continua gritando:

- Legião de cheira-cola... são as nossas crianças. O homem é o pior dos animais, mas não se esqueçam: o tabaco provoca impotência sexual. Fumem maconha.

Boina vermelha, calça, camisa e bottons dos guerrilheiros que gostaria de ser, coturno, colar com pingente de Guevarra. Com seus 57 anos, Moreti estar preparado para a Guerra Civil, a Revolução.

Jovens chegam perto e jogam papelotes no chão, perto da barraca. Ele pega.

- Ainda bem que vai chegando. Estava careta até agora.

Coloca os papelotes de maconha no bolso, alguns até fumam com ele ali mesmo na praça.
Vanildo Rossi Moreti já se candidatou a vereador pelo PT em 1996 no Rio de Janeiro e em 1998 e 2000 em São Paulo defendendo o uso da maconha e assistência jurídica aos maconheiros. Essa sua idéia provocou conflitos dentro do partido porque alguns acreditaram que prejudicava a candidatura de Marta Suplicy. Moreti acabou saindo do partido e em 2002 candidatou-se a deputado pelo Partido Verde.

Muitos jovens passam por ele na praça.

- e aí Moreti, vai liberar?
- Vamos liberar o uso da maconha, grita.

Um grupo de crianças se aproxima. Roupas sujas e rasgadas, olhos vermelhos e tristes.

-Diz aí tio. Não cheire cola. Fume maconha.

O grupo sorri. Moreti se aproxima e o garoto dá uma baforada na cola.

- Joga isso fora. Também já fui menino de rua e já cheirei. Hoje não posso nem sentir o cheiro disso aí. Acaba com seu cérebro. Joga fora.

O grupo sorri e sai baforando.

- Pode deixar tio. E se afastam.

Moreti continua:

- Nós somos muito atrasados. Olha só o que fazemos com nossas crianças, por isso acredito em vidas noutros planetas. Vidas mais inteligentes que sabem viver em sociedade. É ignorância pensar que estamos sozinhos na via-láctea.

Ateu e comunista, culpa a Igreja por grande parte da miséria do mundo. As pessoas mais pobres são as mais religiosas. É uma religião que reprime o prazer, a mulher e o dinheiro.

Filho de pai negro, baiano e mãe pobre, branca e prostituta, nasceu em Passo Fundo no Rio Grande do Sul. Saiu cedo de casa, foi moleque de rua, ladrão especialista em roubo de carro. "Arrombava carro em três minutos. Ajudei muito na ditadura e participei do seqüestro de Burke Elbrick". Na ditadura usou o nome de Carlos Feitosa e fazia panfletagem tomando cuidado para não ser pego pelos milicos colocava os panfletos em um local alto no centro da cidade e uma barra de gelo em cima. Quando o gelo derretia, o vento espalhava os papéis em toda a cidade.

Moreti, quando jovem, entrou na faculdade de Direito, mas abandonou e diz ser um dos fundadores da Farb, Frente da Ação Revolucionária Brasileira, onde jurou muitos políticos de morte. Foi preso depois da morte do prefeito de Santo André, Celso Daniel, para averiguações. Quando não está nas agitações políticas passa as tardes inteiras na praça sem almoçar. "É um dos grandes males que faço". Só come quando chega em casa, uma cobertura invadida pelo movimento dos sem-teto na Avenida Presidente Wilson, na Móoca onde costuma cuidar de um pé de maconha. Não paga aluguel, nem água e luz e mora lá com sua companheira de pouco tempo Ruth. Ele a conheceu na praça há seis anos quando ela, recém chegada do Pará, perdeu todo o dinheiro que trouxe e rodava pela praça com fome.

A casa de Moreti fica na cobertura do prédio e como era para ser o espaço das máquinas, parece casa de boneca porque para entrar só se for abaixado e tomando cuidado para não bater a cabeça nas vigas. Fotos de Yasser Arafat e Che Guevara estão em todos os cantos e os nomes de Lamarca, Ira, Che Guevara e Stalin grafitados de vermelho na parede da pequena casa de boneca. Do lado de fora, flores mal cuidadas perto de uma bandeira de Cuba. Na sala, um sofá, TV e muito entulho de revistas e jornais, mas à frente uma porta dá acesso ao quarto onde não há cama, apenas colchões estendidos no chão e cobertos com lençóis. Do lado, fica a cozinha onde Ruth prepara uma feijoada. Do lado da cozinha, um outro quarto. Saindo da sala chega-se na cobertura de onde dá para ver os quatro cantos da cidade, da Serra da Cantareira aos chifres da Catedral da Sé. Um enorme garrafão branco fica no meio da cobertura e nas noites de frio Moreti e Ruth dormem abraçados e aquecidos olhando para a bandeira da Coréia do Norte balançando devido ao vento gelado. Do outro lado, um banheiro, uma lavanderia e um canteiro abandonado com algumas cebolas murchas.

Moreti tem 11 filhos com 4 mulheres diferentes. Eles estão espalhados em São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia e alguns não o reconhecem como pai por causa de seu comportamento. "Não sou bom exemplo".

Na praça, em sua volta não se aglutina muita gente como quando o comediante Rodela faz seus espetáculos, mas tem seu espaço garantido e quando alguém se aproxima e pergunta:

- O que é isso aqui?

Ele rebate firme, em tom de afronta.

- Daqui só se aproxima quem tem consciência de classe. Se não tiver, se afasta porque aqui nasce um sentimento de insatisfação. Meu lema é luta, perseverança e consciência. Sou leal às minhas convicções até as últimas conseqüências.

Fã do filósofo Michel Onfray critica Lula e vai votar em Heloísa Helena, mas queria que o próximo presidente saísse do Piauí, da Amazônia, do Acre.

- O Piauí existe. Grita no meio da praça ao me ver.

- E que símbolo da Nike é esse na sua blusa? Vai tirar isso. Não vai me dizer que também toma refrigerante. Não faça isso. Você é uma moça instruída. Refrigerante não passa de detergente açucarado.

E continua em meio ao vai e vem de pessoas apressadas:

- Não confiamos no Judiciário, nem no Legislativo que só se unem para absorver seus comparsas.
Moreti é uma mistura de pertinência com rebeldia. "Quero mais é que minha rebeldia aflore". É profissional em atacar autoridades na rua. Ele adora fazer isso, partir para o confronto e conflito.

- They come back toward its land. Fala aos americanos que passam. Here isn’t place.

Quando percebe estrangeiro grita.

- Ei, e seu passaporte?

"Eles ficam doidos com isso e se escondem". Ri.

Na sua lista de afrontados vão desde policiais, a empresários como Antônio Ermírio de Morais, do Grupo Votorantim ao ex-governador Mário Covas:

Era num domingo e não tinha ido para a praça, mas de repente bateu uma grande vontade, pegou a bicicleta e foi até lá onde estava acontecendo a inauguração do prédio das Casas Bahia. Quando chegou lá encontrou o ex-governador. Não resistiu. Gritou:

- Mário Covas, renuncie.

Os rostos de quem estava por ali se voltaram.

- Os professores estão passando fome. Você vai ficar conhecido na História como o governador que mais massacrou os professores.

Mário Covas foi até Moreti e colocou o dedo em sua cara. Ele também era atrevido.

- Eu conheço o seu tipo. É um esquerdinha de esquina. Se eu te der um emprego agora você não vai trabalhar.

"Em parte era verdade. Ele era inteligente, não foi à toa que chegou a ser governador do Estado, mas também não me dei por vencido, pois ele me subestimou. Fiz cara feia".

- Mário Covas, você não tem mais saúde. Renuncie.

"Os guardas foram para perto de mim, peguei minha identidade. Mostrei e fiquei com ela estendida".

- Estou exercendo meu direito de expressão.

- Renuncie Mário Covas. O povo não quer você. Está inválido.

"Fui preso por desacato à autoridade, aplaudido pelo povo que estava do lado da praça e vaiado pelos ricos da festa de inauguração".

"Gosto mesmo de afrontar. Quando vejo essas madames falo: Madame, a senhora com essas jóias caras, roupas de marca sabia que embaixo desse viaduto tem famílias passando fome e crianças que roubam para comer? Sabe o que te desejo madame? Que no próximo farol seja assaltada por um destes meninos e que um revólver dispare acidentalmente em você. Elas saem de perto de mim horrorizadas".

Ele continua disparando palavras que entram como balas nos ouvidos dos transeuntes.

- Vamos ler minha gente. A educação é a grande saída. O Brasil é conhecido lá fora como BBJ (Bola, Bunda e Jesus). Temos que ser conhecidos porque pensamos e somos inteligentes, resolver nossos problemas sociais.

Ted Silva chega com um amigo goiano que está visitando a capital paulista. "Vir a São Paulo e não conhecer Moreti, não conheceu São Paulo".

Mas Moreti se diz cansado psicologicamente. Há sete anos na mesma rotina na praça ouvindo músicas abaixo de seu nível intelectual. "São letras que não dizem nada, feitas para alienar e esse som irritante, sem harmonia me cansa a mente. Impressionante que em volta desses ‘talentos culturais’ se forma uma grande aglomeração. Esses aí não têm jeito. Tem mesmo é que arrancar a cabeça fora e fazer sabão".

Quando conseguir passar à frente a casa onde mora vai embora para seu sítio no Rio de Janeiro onde pretende cuidar de sua roça, plantar seus pimentões, feijão, abóbora e à tardinha pegar a bicicleta e ir para a saída das escolas. "Um homem como eu não consegue ficar parado e adoro a saída das escolas para continuar minha missão de recrutar jovens".

São Paulo estar prestes a perder quem nunca teve, de fato.

Making off

Passando pela praça Ramos de Azevedo me deparo com a figura de Rossi Moreti gritando em frente a uma mesa lotada de livros. Sua figura me chamou atenção. Parei e comecei a conversar e tentar compreender qual o seu objetivo. Nesse dia tinha acabado de ver a aula sobre a “Jornada do Herói” e sua história se encaixou perfeitamente. Uma figura muito inteligente. Toda sua trajetória é bastante singular a começar pelo chamado, que acontece de forma inusitada... “Um dia sonho com o Che me incubindo de uma missão”.

Passei a acompanhá-lo e o fiz por dois meses, o observei por tardes inteiras ouvindo suas histórias e acompanhando os acontecimentos. Senti necessidade de conhecer sua casa e fiz uma visita informal no domingo a fim de conhecê-lo melhor e sua companheira Ruth. Em nenhum momento utilizei gravador (aliás, nunca uso) e evitei fazer anotações na frente do entrevistado, apesar de ele saber do meu interesse profissional e que era sujeito principal de minha narrativa.

(escrita em agosto de 2006)

Cidades Visíveis

Impressões de uma nordestina em São Paulo Uma cidade pode ser vista das mais variadas formas: depende da maneira de como você a olha: se de cima, de baixo, de bicicleta, plantando bananeira, se triste, alegre, humilhado, irritado, bem humorado. Vejo duas cidades sem me comprometer em dizer apenas a verdade, comprometo-me com meu senso de humor e com as imagens que se formam em mim, limitando-me a falar apenas do que senti, não do que está fora e foge ao meu alcance.

Como passei a infância na zona rural de Teresina, Piauí, fazia uma grande festa quando tinha que ir para a cidade com os meus pais para fazer as compras todo fim de mês, pois perto de casa só havia quitandas. Eu, tão pequena, era engolida por um ser estranho e enorme que apresentava novidades em cada esquina. Não desgrudava da barra da saia de minha mãe para não me perder e fiquei desesperada quando, certa vez, parei para comprar um picolé com uma moedinha que encontrei caída e quando procurei mamãe não a encontrei mais. O que seria de mim perdida naquela cidade? A quem pedir ajuda? Comecei a chorar quando senti uma mão apertando meus braços fortemente. - Já te disse para não se afastar. Vambora moleca! Fiquei feliz em ouvir sua voz, embora ríspida. Cresci e meu mundo também. Nos mudamos para cidade porque mamãe queria que os filhos completassem os estudos. Em Barreiros, onde morávamos, havia apenas uma sala de aula e uma professora que dava aula para quatro séries juntas.

- Agora o pessoal da terceira, os outros podem ir brincar lá fora... E começava a rabiscar com o giz na lousa. Os outros saíam e iam brincar de esconce-esconde, amarelinha, boca do forno, bila, passa o anel, tuum-tum... quem bate? sou eu. Eu quem? Anjo bem. Quando fomos para Teresina, os lugares aterrorizantes já não faziam tanto medo assim e eu já sabia andar no Centro sem me perder. Com o passar do tempo, a vontade de ser engolida de novo me empurrou para São Paulo, logo após um ciclo fechado em minha vida.

- Você vai mesmo para aquela Selva de Pedras? Perguntou-me Regina, uma conselheira.
- Minha filha, os ônibus de lá são muito lotados e tem muita enchente. A gente vê na televisão todos os dias, alertou minha mãe.
- Eu vou, birrei.
- Boa sorte, me desejaram todos.

A gente faz uma idéia de São Paulo como se fosse um outro mundo, um sonho, mas quando chegamos tudo é diferente, talvez porque nossa imaginação voe longe demais. Descobri que São Paulo também é uma cidade que a maioria dos paulistas desconhece. Sim, porque existem duas cidades dentro de uma só: a do Teatro Municipal, Avenida Paulista, Brooklin, Moema, Morumbi, Ibirapuera, Masp, Mackenzie, Usp e tem a dos cortiços no Centro, das periferias abarrotadas de analfabetos, do Capão Redondo, de crianças que moram embaixo de viadutos e se drogam a luz do dia.

Certa vez, andando pela Rio Branco olhei nas pupilas vermelhas de um garoto de mais ou menos nove anos. Seus olhos eram tristes de cola e desesperança. O que será que ela espera do futuro? Vi pessoas brotarem do chão nas calçadas e nas praças. Brotam como flores diante de nossos olhos, mas não cheiram a rosas, margaridas ou girassóis, têm um cheiro acre, azedo, fétido, uma mistura de sujeira com urina que impregna em nossas narinas e nos afasta indiferentes em vez de (a)colher. Homens, jovens, crianças dormindo embrulhadas em cobertores xadrez ao lado de lixo, perto do terminal de ônibus Princesa Isabel, talvez sejam descendentes dos escravos 'libertados' por ela.

Telhado de vidro

As favelas daqui são diferentes das de lá, umas são de telhado de zinco outras de telha e palha de coco. A semelhança se encontra na miséria feia e vergonhosa. Na terra da garoa, o menor espaço faz toda a diferença, as pessoas cavam embaixo da terra e constroem suas casas amontoadas em cima de morros, onde, às vezes, para chegar precisam entrar e sair de diversos becos. Com as casas muitas juntas, não há espaço para o quintal. Ah, o quintal... quase sagrado nas casas teresinenses, onde geralmente se encontram plantadas árvores frutíferas, em especial, caju, manga, umbu, siriguela, goiaba, acerola e entre suas folhas se prendem os varais para estender as roupas ao sol, depois de lavadas no tanque, porque é difícil alguém ter máquina de lavar. Secadora é desnecessária porque com o sol a pino as roupas secam rapidinho.

No quintal as crianças brincam com terra, se sujam de lama e fabricam ônibus e caminhões de brinquedo com latas de cerveja e sardinha. Mas a pobreza é pobreza em qualquer lugar, junto dela a desordem e a sujeira onde se vê constantemente crianças com o nariz escorrendo, descalças, com a barriga cheia de vermes e a cabeça, invariavelmente, de piolhos. Lá, o poder público está em quase todas as casas onde cartazes de políticos colados na sala principal com sorriso branco e cara saudável pendem das paredes. Parecem etéreos e o são para aquelas famílias que confiam seus votos e suas vidas para novamente serem esquecidas. Ao lado do político, quadros de todos os santos, da Santa Ceia, do Coração de Jesus, da Virgem Maria. Se Deus quiser tudo vai melhorar...

Na maioria dos bairros residenciais, à tardinha, as pessoas colocam suas cadeiras de macarrão nas calçadas e observam os outros passarem, o tempo, o céu. Sempre se aproxima uma vizinha e a conversa gira em torno da vida alheia.

De vez enquando meu celular toca. Vejo o DDD 86. É sempre um amigo perguntando:

- E aí, como vai a vida em São Paulo?

Tanto aqui com lá, nas favelas as casas são peladas, dificilmente têm reboco e estão sempre incompletas. Falando em moradia...Em alguns bairros paulistas, as pessoas moram em apartamentos onde relaxam em frente à TV, lêem livros, olham a vida pela janela onde não vêem árvores, a não ser as de concreto, feias como caixas de papelão sem graça, avistam aqui ou ali algum jardim onde há um placa: "Este lugar é preservado pela empresa X". Depois vão para seus quartos, dormem, saem do apartamento, descem de elevador, pegam seus carros no estacionamento subterrâneo, estacionam na empresa, sobem pelo elevador e se trancam o dia inteiro em suas salas confortáveis. Depois pegam o caminho de volta... E todo dia isso se repete. Em Teresina, tem gente que já vive assim, pois a cidade passa por um processo de verticalização.

Voltamos a Sampa no tempo e no espaço quando em algumas passadas você está, quem diria? No Japão. É só alcançar o bairro da Liberdade com suas luminárias vermelhas e brancas características daquele país e um monte de japonezinhos miúdos andando de lá para cá dizendo palavras incompreensíveis para mim na praça da Liberdade, perto da Capela de Santa Cruz onde se queima velas em favor de todas as almas.

Aqui tem bairro de japonês, italiano, libanês e teresinense. Na Vila Ingá, periferia da zona Sul, a maioria da população é de teresinense que sonhou em um dia mudar de vida e ter mais oportunidade, pois como em todo o Brasil a maioria dos jovens não tem acesso à universidade nem mesmo ao ensino médio porque precisa trabalhar para ajudar os pais a colocar comida na mesa. Como o emprego é difícil, vêm para São Paulo, a terra que emana leite e mel. Ouvem histórias de pessoas que vieram e mudaram de vida, as novelas mostram apenas um lado da cidade, por isso quando chegam e são deslocadas para a periferia, morando em cubículo de uma peça com pouca estrutura e vão trabalhar como peão, descascador de cebola, doméstica, garçom, dançarina em boate e tem que pagar um aluguel caríssimo pelo cubículo de uma peça seus sonhos se desvanecem, mas não morrem porque o nordestino é forte, já passou por coisas piores e com fé em Deus tudo vai dar certo.

Assim, montam suas vidas, têm filhos, ligam para os parentes que mandam mais um irmão ou primo porque lá a situação está brava. Todo mundo vai se ajudando e quando conseguem juntar um dinheirinho vão fazer uma visita aos familiares. Quando chegam são recebidos com festa, pois são "gente importante", "de São Paulo". Aqueles que sentem muita falta, depois de muito lutar aqui resolvem voltar para abrir uma quitanda e morar perto dos seus novamente.

Mas tem teresinense de grana que chega aqui em busca de cursos e de maior especialização. Passar um tempo nestas bandas é uma oportunidade de crescimento profissional e pessoal porque você entra em contato com os autores dos livros e com as mais diversas formas de arte em cada esquina. Fica menos árida a luta por emprego no regresso. Porém, desemprego e filas também são vistos por aqui, principalmente nas agências de emprego situadas na Barão de Itapetininga e Lapa. Filas enormes de pessoas que entregam currículos e observam os homens-sanduíche perdidos em volta às ofertas "Compro Ouro" e de empregos de vendedor e de operador de telemarketing.

Existem muitos vendedores nos trens, eles marretam amendoim, água, chocolate, escova de dente, tesoura, pilha e até cerveja. Gritam forte por causa da concorrência e dos pedintes.

- Com licença senhores passageiros. Quem puder me ajudar com 10 centavos, 5 centavos e até 1 centavo...

Comer, comer, é o melhor para poder crescer

Logo cedo, sinto o cheiro de cuscuz de milho e café fresquinho vindo da cozinha. Abro os olhos e me espreguiço, depois volto a fechá-los e presto atenção na letra da música de Naira Lima. Meu pai já deve ter terminado de fazer o café. Hora de levantar para o trabalho. Esse cheiro me faz lembrar de quando eu era menor e ainda morava em Barreiros, pois minha avó Nega costumava fazer bolinhos fritos em formato de bicinhos, bolo cacete e doce de cajuí quando era época dos cajus.

Quase sempre ia almoçar em casa. No horário de almoço entre meio dia e uma hora, a comida é posta na mesa. Mamãe coloca o arroz, feijão, garrafa d'água, a farinha e a carne de bode misturada com quiabo, maxixe e abóbora, assim que é bom para dar sustância, a comida precisa ser forte e comemos de colher, nada de garfo e faca. Certa vez, mamãe me levou para visitar minha madrinha e na hora do almoço avistou talheres na mesa.

- E agora? Vou passar vergonha, não sei usar essas coisas...

Eu era criança e não entendia nada, nem porque mamãe ficou tão sem graça na mesa olhando para um lado e outro. Ah, minha tia Idelfina come com a mão, o famoso "capitão". Ela sempre me fala que a comida fica mais saborosa. Na cozinha, os teresinenses gostam de maria isabel - arroz misturado com galinha caipira ou carne de sol-, baião de dois - feijão misturado com o arroz - de peixe frito recém pescado no açude ou rio mais próximo, de paçoca de gergelim, rapadura e caldo de cana com pastel.

As massas ficam para um dia especial, aniversários, casamentos, reunião com os amigos ou com a família aos domingos, aí fazem pizzas, lasanhas, macarronada e até arriscamos uma salada diferente, tudo com refrigerante porque suco não combina com massa. O ambiente animado pede um forrozinho bem dançado, de preferência da Calcinha Preta, Magníficos ou Mastruz com Leite.

Em São Paulo não existe hora de almoço e as massas são preferidas. Um sanduíche fast food Matador substitui o arroz com feijão e as pessoas comem em pé mesmo porque têm que voltar ao trabalho. Há muito trabalho a fazer. Comem capeletti, spaghetti, lasanhas, adoram massas, deve ser influência dos italianos. Tem lugar bom e caro para comer, mas também lugar "boca de porco" que serve churrasco grego a 1 real onde a carne fica girando e girando no meio das calçadas. Outra boa pedida é o pão de queijo e os biscoitos Fritz amanteigados encontrados nas estações de trem e metrô. Minha amiga Karla Nery me mandou um e-mail pedindo para eu levar alguns quando voltasse a Teresina e perguntando:

- E aí, como vai a vida em São Paulo?

Caldeirão

Aqui há pessoas das mais variadas nacionalidades: húngaros, espanhóis, ingleses, franceses, bolivianos, japoneses e você os encontra na rua falando suas línguas. Você pode ser você mesmo, sem máscaras e medo. Nas ruas pode avistar um punk com seu cabelo roxo e suas roupas chamativas, ele passa despercebido, assim como o beijo de duas garotas no meio da rua. É natural o namorado dormir na casa da namorada. Uma cidade de contrastes, pois um terno Armani está ao lado dos trapos nas costas do mendigo na Avenida Paulista. Tem muitos bares, teatros, cinemas e apresentações internacionais, os espetáculos daqui só chegam a Teresina quando ficam velhos e esgotam o público.

Há quem diga que lá se vive com um certo atraso, o tempo passa mais devagar, modorrento e que as mudanças demoram a chegar e acontecer. Sinto que lá a cultura não é da velocidade, mas da tradição que é cristalizada na base da sociedade. Não assistimos pré-estréias de filmes, mas temos o Bumba-Meu-Boi, tambor de crioula, festas juninas, o vaqueiro. O meu pai foi vaqueiro, o via como um Deus quando ele aparecia com sua roupa de couro: chapéu e gibão pendendo dos ombros montado em seu cavalo "Sabiá".

- Quando crescer, vou casar com um vaqueiro, sempre dizia.

Mas eles eram inatingíveis participando das vaquejadas em cima de seus cavalos garbosos, laçando o boi, ganhando prêmio e cantando o aboio. ÊÊÊÊÊÊÊ.... BOI.

Em São Paulo a vida é frenética, veloz, de mudanças rápidas e constantes. Nas ruas, muitas pessoas. De onde elas vieram? Para onde elas vão? Por que caminham tão apressadas e se esbarrando umas nas outras? Chega a ser agonizante em alguns momentos, principalmente nos horários de pico na estação Sé quando as pessoas saem assanhadas como formigas quando o formigueiro é pisoteado por um intruso. Por fora, o centro da cidade é sujo, tem muitos viadutos, pessoas moram embaixo deles. No viaduto do Chá, os ciganos te puxam para ler sua mão e sempre tem um repórter de TV no Vale do Anhangabaú para entrevistar pessoas.

Teresina tem o nome nobre - pois é homenagem a Imperatriz do Brasil Teresa Cristina - a Avenida Frei Serafim, a ponte da Amizade que a liga ao Maranhão, o encontro dos rios Poti e Parnaíba, uma floresta fóssil, a lenda do cabeça de cuia que vive nas águas dos rios e não descansará enquanto não matar sete marias virgens, tem a Lili Doces, castanha de caju, Torquato Neto e a cajuína cantada por Caetano Veloso.

Garota do tempo

Aqui se toma muito café e se fuma muito, há chaminés ambulantes em todos os cantos. Certa vez perguntei para a Paula o porquê. Será o estresse? Ela disse que pode ser por causa do frio. O cigarro esquenta. A terra da garoa tem um clima muito instável, as mulheres precisam sair de casa preparadas e com uma bolsa grande para levar guarda-chuva, agasalho, cachecol, camiseta, pois nunca se sabe se vai fazer frio ou calor, mesmo que só saia de casa depois de vê a garota do tempo na TV. Um dia saí pela manhã parecendo uma esquimó e à tarde as pessoas me olhavam como se fosse uma alienígena porque o calor estava a pino. Nessa hora recebi uma mensagem de Herbert de Sousa:

- Ei, esqueceu os amigos? Manda notícias. Como está a vida em São Paulo?

Logo, começou a garoar e resolvi me esconder no sebo do Messias, próximo a Catedral da Sé, acabei levando "Na pior em Paris e Londres" de George Orwell.

Em Teresina, você sempre sabe que vai fazer calor, por isso a garota do tempo não faz muito sucesso. Agora uma coisa é certa: o frio torna as pessoas mais elegantes. As mulheres calçam botas de salto alto com bico fino, meias calças, saias longas e maquiagem. Em Teresina, o calor muito forte faz as pessoas transpirarem, borrar a maquiagem, ficarem desmazeladas com as costas da camisa molhada e aparência de cansaço por conta da fadiga, por isso se usa camisetas, saias e calças jeans com sandália aberta, muito simples. Lá, quando uma mulher coloca uma meia-calça para sair na rua, principalmente à luz do dia, comenta-se logo que ela está com 'pereba' na perna e quer esconder.

O ar-condicionado deveria ser obrigatório em todos os ônibus de Teresina, mas não é e todas as casas deveriam ter, mas a grande maioria das pessoas não tem condições de comprar o aparelho e, mesmo se tivesse, não poderia pagar a conta de energia porque o ar-condicionado puxa muito, a não ser que se faça um "gato". O calor chega a ser tanto que um velho conhecido político do Piauí, Alberto Silva, propôs pintar todas as avenidas asfaltadas de branco, já que esta cor não absorve tanto calor, outro propôs mudar o horário das aulas para que no período de meio-dia às duas horas todos estejam em casa. A população denomina o pior período de B-R-O BRÓ, a terminação dos meses mais quentes do ano: setembro, outubro, novembro e dezembro. Em São Paulo, mesmo sendo mais frio, alguns ônibus e o metrô tem ar-condicionado. Porém, quando faz muito calor o ar fica irrespirável por conta da poluição. Dar para notar no banho quando você vai limpar o nariz e dele sai uma espécie de fuligem.

Como a maioria das cidades piauienses ainda são pequenas não se leva mais do que quarenta minutos para chegar da periferia ao Centro. Aqui tudo muda e algumas pessoas levam mais tempo no trajeto ida e volta dentro do transporte do que trabalhando propriamente. Para compensar as longas horas, a maioria leva consigo um caça-palavras, passa-tempo, revistas mais variadas e livros. As pessoas lêem no ônibus e metrô não somente o conteúdo da prova que vai fazer no primeiro horário ou uma apostilha que o professor vai usar no dia seguinte. Além da leitura, usam disc man durante a viagem, uma forma das estações passarem mais rápidas. Os meios de transporte daqui são muito lotados e as pessoas já chegam no trabalho irritadas e estressadas. Se lhe desejam bom dia, perguntam mal humoradas:

- Bom dia por quê?

Na beira do caos

Um dia quando estava com minha amiga Conceição ela me mostrou o rio Tietê, que tantas vezes ouvi falar por levantar espumas de poluição e invadir casas. Fiquei abismada. Não era um rio, mas um esgoto fétido. Imediatamente pensei nos dois rios que banham Teresina, o Poti e o Parnaíba. No Poti Velho, zona norte da cidade, a maioria das pessoas vive do artesanato da cerâmica e da pesca. Os pescadores jogam suas redes e ainda conseguem pegar peixes grandes, mas as reclamações já podem ser ouvidas na cidade, pois os esgotos também são jogados em nossos rios de forma criminosa. No centrão da cidade, próximo à avenida Maranhão, o rio Parnaíba forma "coroas" de assoreamento. Um ambientalista polêmico local, Judson Barros, já grita pelo rio. Recentemente navegou em uma balsa desde sua nascente até ele desaguar no mar formando o Delta do Parnaíba, um dos únicos do mundo em mar aberto.

Aos domingos, os molecotes vão jogar bola e os adultos comerciantes montam barracas com palha de coco e vendem bebidas, espetinhos, peixe assado na telha. Vão famílias inteiras, mas da periferia porque esse programa é considerado de gentalha. Os "boys" preferem as margens do Poti com suas calçadas arborizadas e a tranqüilidade de ter o shopping Riverside bem em frente, o ambiente é mais elitizado e nos quiosques bonitinhos os donos colocam DVDs para os clientes que chegam em seus carros, se sentam, conversam e azaram a noite inteira.

Sonho que se sonha só

São Paulo é mesmo cinzenta. Engraçado com as estrelas nunca aparecem e a lua se esconde. Parece que a cidade não tem linha do horizonte porque os prédios a esconde. Teresina tem o céu azul e brilhante e as nuvens tomam as mais diferentes formas: algodão-doce no céu, dragões, peixes, urso. À noite as estrelas competem com a lua. Quando eu era criança, minha mãe me dizia que dentro da lua estava São Jorge com seu cavalo branco. Eu olhava e conseguia ver direitinho, só não contava as estrelas para não nascer verrugas. São Paulo deve ser mais cinzenta porque as crianças não podem ver São Jorge dentro da lua, mas não se engane com o cinza, pois esta cor pode ser apaixonante e te prender pelo resto da vida.

Ops, mais uma mensagem no meu celular. É de Flávia Rocha perguntando:

- E aí, como vai a vida em São Paulo?

********
Making Off

Meu trabalho inicial seria uma reportagem sobre Pombo-Correio. Colhi informações com o Sr. José Quintal, presidente da Sociedade Columbófila de São Paulo, mas infelizmente não consegui personagens. Tive que mudar de tema por conta do tempo de entrega do trabalho. Como estava assistindo aulas de ensaio pessoal com Edvaldo Pereira Lima optei por fazer um sobre a forma de como que eu vejo duas cidades que marcaram e fazem parte de minha vida, impressões que se misturam através de reflexões e forma de olhar. O livro "Cidades Invisíves" de Ítalo Calvino me ajudou a compreender melhor e a ter alguns relances na forma de encarar as palavras.

De Teresina, puxei muitos acontecimentos pela memória através de visualização criativa e de objetos que me faz pensar na cidade e naquilo que caracteriza minhas vivências. A outra, São Paulo, procurei visitar e vivenciar alguns espaços, que de alguma forma também se prendem a minha forma de encarar a realidade.

O mapa mental me fez pensar em alguns subtemas que facilitassem para mim, daí surgiram comportamento, comida, arquitetura, clima, tudo isso foi se misturando e refazendo.

Escrever este texto foi difícil porque fiquei com medo de ser preconceituosa e de mostrar cidades que talvez só existam para mim. Edvaldo me tranquilizou quando falou: "Ensaio Pessoal são suas vivências, é sua forma de olhar". Mostrei o texto também a alguns colegas de classe e de Teresina. Eles me ajudaram a podar e a refletir melhor sobre minha forma de encarar esses lugares. Fiquei feliz em ter feito um ensaio pessoal porque me fez bem interiormente, como se eu juntasse peças antes embaralhadas, montasse um quebra-cabeça e ficasse mais consciente sobre mim mesma.

Após escrever o texto senti que ficou claro o contraste entre as cidades. Entre suas semelhanças, pouco destacadas no texto, tem eu mesma e para solidificar esta ponte coloquei em pontos estratégicos mensagens de amigos:

- E aí, como vai a vida em São Paulo?

(escrita em novembro de 2006)

A invasão das espumas

Edmilson, mais conhecido como “Tic” andava pelas ruas limpas e bem cuidadas sem notar as cores vibrantes de amarelo, azul, rosa, verde dos casarões antigos e que dão à cidade, em meio ao vale, um certo ar colonial. Seus passos estão trôpegos, bebera demais naquele dia 06 de agosto em que a paz da cidade fora quebrada por romeiros vindos de todo o estado e de fora também. A cidade estava fervilhando em frente ao santuário de Bom Jesus.

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Há mais de seis mil anos corro tranquilamente. Fui responsável pela interiorização de São Paulo e do Brasil, indiquei o caminho para o sertão. Minhas águas amarelas e quietas despertaram sonhos de aventura e riqueza, proporcionei lazer e recreação, inspirei amores, sensibilidades poéticas, suportei o transporte de habitantes e mercadorias. Minhas águas eram corredeiras.
Já recebi vários nomes entre eles Anhembi (rio das Perdizes) e Tietê (rio das águas, volumoso). Às minhas margens se formaram cidades. No início do século XVIII, um grupo de pescadores me retirou um tesouro escondido no fundo das águas escuras. Era uma imagem talhada em madeira de Bom Jesus e construíram junto a mim uma capela, e a partir dela, uma cidade Pira (peixe) Pora (pula), Pirapora do Bom Jesus, a 54 km de São Paulo.

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Tic caminhava sem saber, ao certo, onde suas pernas o levariam. De repente, sente um cheiro de ar podre e esgoto. Uma lágrima cai de seu rosto e ele se encaminha para uma ponte azul, baixa e de madeira. Ao longe, vê as luzes da igreja do mosteiro, escuta gritos festivos, olha para o céu e contempla as estrelas ao seu redor.

Pirapora é uma cidade pequena e ribeirinha que se resume às margens do rio, em baixo das janelas correm as águas do Tietê.

Tic olhava entristecido, o olhar absorto, pensou nas comemorações, no senhor morto, no rio morto. Grandes blocos de espuma pareciam envelhecer o rio, com cabelos brancos, uma espuma fétida parecida com chantilly dentro do café, as águas do Tietê são escuras como café. Subiu na madeira azul da pequena ponte e pulou nas águas mal cheirosas e repugnantes.
Estava bêbado, suas narinas aspiravam um odor fétido, mesmo assim ele flutuava nas águas. Foi em frente até resolver parar para descansar. Estava na hora de ir para casa. O Tietê não tirou-lhe a vida.

Levantou-se e foi para casa. Todos nas ruas olhavam para ele, imaginavam o que tinha acontecido, mas não acreditavam. A mulher espantou-se. No dia seguinte, Tic foi para o hospital.

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Deve ter sido por volta de 1950 que minhas águas passaram a ser receptoras de resíduos de casas e indústrias, provocando minha deterioração, fui represado em muitos trechos e eleito à geração de energia elétrica, energia esta que serve de suporte para aqueles que me poluem.

A história tem início em 1899, quando a Light, empresa canadense, recebeu a concessão para explorar os serviços de transportes urbanos na capital paulista. Inicialmente, foi instalado um sistema gerador termo-elétrico, enquanto a usina de Parnaíba era construída. Para isso, era preciso uma grande represa para regularizar a vazão de minhas águas, hipótese afastada, pois o reservatório afetaria a cidade de São Paulo. Em 1908, nova concessão e o rio Guarapiranga, afluente do meu amigo Pinheiros, viria a se transformar na Represa Velha de Santo Amaro, depois chamada de Guarapiranga. A Light conseguiu outras concessões e cerca de trinta anos depois inaugurou-se a Usina de Piratininga, às margens do rio Pinheiros. Meu uso exclusivo para a geração de energia ocasionou enchentes e deixei de ser utilizado para abastecimento das pessoas.

Hoje transporto substâncias sólidas, produtos líquidos e gasosos e muito lixo em suspensão.
Eu nasço limpo e saudável nas encostas da Serra do Mar, em Salesópolis e percorro 1.110 km cortando São Paulo. Ao contrário da maioria dos rios cujas águas correm para o oceano, o meu curso vai para o interior até eu desaguar no rio Paraná na divisa de Mato Grosso do Sul, no município de Itapura. Antes mesmo de eu chegar à metrópole já começam a me maltratar e quando chego à cidade de São Paulo já não existe vida em minhas águas. Recebo esgotos, fezes, urina e sigo padecendo. Minhas águas escuras e de odor forte deixam a capital e seguem rumo ao interior em meio a vales de características rurais. Em muitos trechos as águas ficam insuportáveis até para mim mesmo e as pessoas passam com o dedo no nariz e viram as costas para mim. Isso me magoa muito.

Sigo até a barragem de Pirapora do Bom Jesus onde grandes blocos de espumas se formam provenientes de detergentes. Estes produtos não se decompõem porque tenho pouco oxigênio devido à poluição, mas na movimentação em minhas corredeiras ou em virtude da queda da barragem as águas se oxigenam e enormes blocos de espumas saem pelos meus poros. Também a falta de chuvas no período da tarde ocasiona alta concentração de poluentes que só começa a se desmanchar às 10 horas da manhã quando os raios solares furam as bolhas de espumas.
Será que ainda podem me chamar de rio? Cagam em mim. Eu apodreci. O cheiro de ovo podre é sinal da falta de oxigênio. Estou morto em muitos pontos sem poder respirar.

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Isabel da Costa caminha com a filha Rafaela de 4 anos contornando o Tietê. Lá em baixo, as espumas surpreendem os olhos leigos. Para os dela, nem tanto assim, pois sempre vira o Tietê daquela forma. Quando o vento vinha mais forte se afastava um pouco para as espumas não pegarem na sua pele nem na de Rafaela como aconteceu um dia desses com as roupas no varal. Teve que lavar todas novamente.

Rafaela caminha ao lado da mãe, calada, olhando para frente, iria com Isabel pegar umas cestas básicas que estavam sendo distribuídas na cidade para pessoas carentes na véspera do Natal.
Elas moram nas margens do rio, perto da barragem de Pirapora, mas nunca passou pela cabeça das duas tomar um banho refrescante. A casa construída sobre um barranco tem as costas viradas para o rio.

Isabel e Rafaela de mãos dadas seguem seu caminho. Ao passarem em frente à praça da igreja avistam seu José da Silva que trabalha em uma lanchonete. Umas coxinhas fumegantes acabam de ser preparadas. Moreno, magro, dentes postiços cheios de massa, boina preta na cabeça acende um cigarro Marlboro e levanta fumaça, os olhos úmidos e miúdos espreitam. Chegou na cidade faz 8 anos, foi uma viagem a passeio, mas resolveu ficar definitivamente. Olhando o teto, lembra distante dos comentários dos mais velhos da cidade.

As pessoas banhavam, pescavam peixe, assavam e comiam lá mesmo na margem. As águas eram tão cristalinas que dava para ver os peixes nadarem. Agora esse cheiro que sentimos espanta as pessoas.

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Na praça principal de Pirapora é possível apreciar o tradicional samba de roda, considerado por Mário de Andrade a raiz do samba paulista. Sua romaria é a segunda maior do país, perdendo apenas para a de Aparecida. Em maio de 2003 aconteceu um fenômeno que marcou a história da cidade, não por culpa minha, mas pela ação do homem. Recebo como afluente meus amigos Tamamduateí, que traz os esgotos da região industrial e doméstica do grande ABC, e Pinheiros que me joga a sujeira da região sul de São Paulo.

Como falei minha vazão é controlada para a geração de energia. Em Santana de Parnaíba tem a usina, pouco antes de Pirapora tem uma barragem com desnível de 25 metros para controlar meu nível, pois mais para a frente tem a usina Geradora Rasgão. À noite, abriam muito as comportas da barragem de Pirapora para encher o reservatório da usina Rasgão, por isso as espumas subiam 5 a 7 metros e esbarravam nas estruturas das pontes. Foi em maio de 2003 que a invasão das espumas impediu pessoas de atravessar para o outro lado da cidade e crianças de ir para a escola.

Depois do escândalo nacional a abertura da comporta foi mudada para contornar a altura da espuma. A prefeitura colocou um medidor na ponte e quando a espuma ultrapassar o limite permitido a operadora das usinas pagará uma multa por prejudicar a cidade.

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Alexander William desde 1983 quando era gerente de um posto de gasolina à beira do Tietê acompanha a poluição porque já naquela época os carros que tinham pára-choques cromados eram atacados pelo gás sulfídrico do Rio Tietê. Além disso, mora às margens do rio e já teve a casa invadida pelas espumas. Revoltado, resolveu tirar várias fotos em maio de 2003 sempre às 6h30 da manhã na sua ida ao trabalho e criou o site “A testemunha ocular da história” com fotografias e denúncias.

Ao entrar no site o internauta escuta a música do Repórter Esso, noticiário da década de 60 que William escutava e via na televisão em tempos de infância, onde o slogam era Testemunha Ocular da História, que ele ao longo destes anos passou a ser. William recebe alunos de faculdades e de escolas e mostra a realidade em que está inserido.

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Magdiel Oliveira Rodrigues e Douglas brincam na rua “furacão fervendo” no bairro Jardim de Bom Jesus. Eles dão pulo mortal entre os buracos formados na rua de barro arrodeada de capim e lixo que cai diretamente no rio. O pai de Magdiel cavou um caminho para longe para que as águas das casas que escorrem não passem em frente à sua, mas de qualquer forma ela cai dentro do rio.

Magdiel e Douglas discutiam sobre o futuro do Tietê.
- Eu queria me banhar nele, mas acho que não vou, disse Douglas.
- Depende de cada um de nós. Se cada um se conscientizar, o Tietê ainda vai se salvar.
O sol estava forte e eles foram pegar uns gelinhos de manga. Ao lado, o Tietê corria quieto e no alto da ladeira descia um homem baixo e moreno.
- Tio Tic, gritou Magdiel.
Tic acenou com a mão e se aproximou com olhos interrogadores em seguida desviados para aquele que o teve nos braços.

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Making Of

A idéia inicial era fazer uma matéria sobre a despoluição do rio Tietê. Tudo começou quando vi uma matéria na TV Cultura e a Clarisse Goldeberg me emprestou um livro da ONG S.O.S Mata Atlântica, que me serviu de pesquisa. O que mais me chamou a atenção foram as espumas que se formam depois de Santana de Parnaíba e que cobre todo o rio em Pirapora do Bom Jesus, daí resolvi ir lá para ver como as pessoas conviviam com esta realidade.

Visitei a cidade no começo de dezembro onde conheci os personagens e as espumas. Realmente fiquei bastante chocada de como a ação do homem pode provocar fenômenos como esses, por isso resolvi enfocar minha matéria apenas em Pirapora do Bom Jesus e nas espumas.
Na hora de estruturar o texto dei vida ao rio para que ele mesmo contasse suas dores e seus problemas intercalando com personagens da cidade que convivem e têm uma história com o Tietê.

Na verdade, senti dificuldades na hora de escrever o texto e não gostei do resultado final. Travei um pouco na hora de estruturar as histórias. Contudo, foi bastante significativo porque houve muita pesquisa, talvez tenha até sido por isso, talvez minha dificuldade seja trabalhar com as características literárias desejáveis com pesquisas históricas e numéricas.

(Reportagem escrita em março de 2007)