quinta-feira, 2 de julho de 2009

Diferente, mas não indiferente

"Eles se dizem os sábios da humanidade. Mas só enxergam o amor próprio e o nariz enquanto os poetas de rua contra o Império do Terror só pregam cultura e amor". (letra reggae-circuito 10).

Moreti acordou suado. A noite estava quente, sua camisa pregada às costas, revirou-se na cama, mexeu os pés revirando o lençol. Não sabia se estava acordado ou sonhando. O líder guerrilheiro Che Guevara estava sentado ao seu lado na poltrona fumando seu charuto cubano. Moreti aspirou a fumaça, esfregou os olhos. Não gostava do cheiro do charuto. Guevara sorriu para ele e falou:

- Vá para São Paulo reunir o maior número de guerrilheiros possível e faça a Revolução!

Em 1998, Moreti saiu do Rio de Janeiro e chegou em São Paulo, cidade que diz não gostar porque possui a elite mais conservadora do Brasil, plantadores de café, que não reconhecem Getúlio Vargas. "Em São Paulo não existe nenhuma homenagem a Getúlio, nem mesmo um nome de rua", além do mais a terra da garoa não possui mar onde ele possa se sentir mais livre de vez em quando. Só estar aqui para cumprir sua missão e atender ao pedido do ídolo.

Em 14 de agosto de 1999, fundou a AFAPRAZ, Associação dos Freqüentadores da Praça Ramos de Azevedo, que abriga o Teatro Municipal de São Paulo. Há oito anos, por volta das 13 horas, Moreti chega na praça Ramos de Azevedo com sua bicicleta azul e seu mochilão desbotado e rasgado com uma bandeira de cuba pintada no bolso da frente. Na bagagem, uma mesa móvel, bandeiras de Cuba e dos Estados Unidos, livros... na bike, um megafone amarrado com barbante e na cabeça muitas idéias. Começa a montar sua barraca em frente às Casas Bahia no Vale do Anhangabaú, onde grita "Casas Bahia não tem na Bahia". Recobre a mesa móvel com um plástico azul e surrado, coloca uns livros sebentos em cima como a biografia de Che Guevara, 'Os homens do Cremlin -Os grandes nomes de nossa época', A Coluna Prestes de Nelson Werneck Sodré, Guerra Civil de Hans Magnus Enzenberger, além de cds do jornalista e produtor Ted Silva, uma pasta com todas as matérias que já saíram sobre ele em revistas e jornais e um caderno de assinaturas, onde só quem assina é quem tem o espírito de indignação.


Prende entre dois postes de iluminação, como se fosse um varal, papelões com suas frases de ordem: "Por minhas idéias luto até as últimas conseqüências", "A geração de 80 é paga pau, usa piercing e tatuagem, mas nunca leu Bertold Brecht", "Todo país desenvolvido passou por uma guerra civil". As pessoas param e lêem suas frases coerentes e indignadas. Saem sorrindo, pensativas, balançando as cabeças ou indiferentes. Ele pega uma bandeira suja e surrada dos Estados Unidos onde no lugar das estrelas encontra-se uma caveira. Coloca no chão para que seja pisada e ao lado encosta um prato prateado e meio sujo, onde pigam umas moedas. "Eu vivo de migalhas, coloquem umas moedinhas aqui".

Atrás de sua banca, prende fotografias e posters de Osama Bin Laden, Saddam Hussein, venerados por terem enfrentado o Grande Império. "Vamos derrubar todos os prédios da Ilha de Manhattan e devolver aos cherokees. Viva Osama Bin Laden".

Um senhor alto, branco, cabelos grisalhos passa olhando, pára e faz careta. Moreti olha para ele e continua gritando com o megafone na mão e voz firme e enérgica.

- Viva Osama!!! Vamos fumar maconha. Não fumem tabaco, fumem maconha. Olhem o que essa sociedade estar fazendo com nossas crianças. São verdadeiras legiões de cheira-cola e ninguém se importa.

O senhor olha para Moreti de alto a baixo com desdém e dispara:

- Você é um louco. Devia ser jogado do Viaduto do Chá. Sai praguejando.

Moreti continua gritando:

- Legião de cheira-cola... são as nossas crianças. O homem é o pior dos animais, mas não se esqueçam: o tabaco provoca impotência sexual. Fumem maconha.

Boina vermelha, calça, camisa e bottons dos guerrilheiros que gostaria de ser, coturno, colar com pingente de Guevarra. Com seus 57 anos, Moreti estar preparado para a Guerra Civil, a Revolução.

Jovens chegam perto e jogam papelotes no chão, perto da barraca. Ele pega.

- Ainda bem que vai chegando. Estava careta até agora.

Coloca os papelotes de maconha no bolso, alguns até fumam com ele ali mesmo na praça.
Vanildo Rossi Moreti já se candidatou a vereador pelo PT em 1996 no Rio de Janeiro e em 1998 e 2000 em São Paulo defendendo o uso da maconha e assistência jurídica aos maconheiros. Essa sua idéia provocou conflitos dentro do partido porque alguns acreditaram que prejudicava a candidatura de Marta Suplicy. Moreti acabou saindo do partido e em 2002 candidatou-se a deputado pelo Partido Verde.

Muitos jovens passam por ele na praça.

- e aí Moreti, vai liberar?
- Vamos liberar o uso da maconha, grita.

Um grupo de crianças se aproxima. Roupas sujas e rasgadas, olhos vermelhos e tristes.

-Diz aí tio. Não cheire cola. Fume maconha.

O grupo sorri. Moreti se aproxima e o garoto dá uma baforada na cola.

- Joga isso fora. Também já fui menino de rua e já cheirei. Hoje não posso nem sentir o cheiro disso aí. Acaba com seu cérebro. Joga fora.

O grupo sorri e sai baforando.

- Pode deixar tio. E se afastam.

Moreti continua:

- Nós somos muito atrasados. Olha só o que fazemos com nossas crianças, por isso acredito em vidas noutros planetas. Vidas mais inteligentes que sabem viver em sociedade. É ignorância pensar que estamos sozinhos na via-láctea.

Ateu e comunista, culpa a Igreja por grande parte da miséria do mundo. As pessoas mais pobres são as mais religiosas. É uma religião que reprime o prazer, a mulher e o dinheiro.

Filho de pai negro, baiano e mãe pobre, branca e prostituta, nasceu em Passo Fundo no Rio Grande do Sul. Saiu cedo de casa, foi moleque de rua, ladrão especialista em roubo de carro. "Arrombava carro em três minutos. Ajudei muito na ditadura e participei do seqüestro de Burke Elbrick". Na ditadura usou o nome de Carlos Feitosa e fazia panfletagem tomando cuidado para não ser pego pelos milicos colocava os panfletos em um local alto no centro da cidade e uma barra de gelo em cima. Quando o gelo derretia, o vento espalhava os papéis em toda a cidade.

Moreti, quando jovem, entrou na faculdade de Direito, mas abandonou e diz ser um dos fundadores da Farb, Frente da Ação Revolucionária Brasileira, onde jurou muitos políticos de morte. Foi preso depois da morte do prefeito de Santo André, Celso Daniel, para averiguações. Quando não está nas agitações políticas passa as tardes inteiras na praça sem almoçar. "É um dos grandes males que faço". Só come quando chega em casa, uma cobertura invadida pelo movimento dos sem-teto na Avenida Presidente Wilson, na Móoca onde costuma cuidar de um pé de maconha. Não paga aluguel, nem água e luz e mora lá com sua companheira de pouco tempo Ruth. Ele a conheceu na praça há seis anos quando ela, recém chegada do Pará, perdeu todo o dinheiro que trouxe e rodava pela praça com fome.

A casa de Moreti fica na cobertura do prédio e como era para ser o espaço das máquinas, parece casa de boneca porque para entrar só se for abaixado e tomando cuidado para não bater a cabeça nas vigas. Fotos de Yasser Arafat e Che Guevara estão em todos os cantos e os nomes de Lamarca, Ira, Che Guevara e Stalin grafitados de vermelho na parede da pequena casa de boneca. Do lado de fora, flores mal cuidadas perto de uma bandeira de Cuba. Na sala, um sofá, TV e muito entulho de revistas e jornais, mas à frente uma porta dá acesso ao quarto onde não há cama, apenas colchões estendidos no chão e cobertos com lençóis. Do lado, fica a cozinha onde Ruth prepara uma feijoada. Do lado da cozinha, um outro quarto. Saindo da sala chega-se na cobertura de onde dá para ver os quatro cantos da cidade, da Serra da Cantareira aos chifres da Catedral da Sé. Um enorme garrafão branco fica no meio da cobertura e nas noites de frio Moreti e Ruth dormem abraçados e aquecidos olhando para a bandeira da Coréia do Norte balançando devido ao vento gelado. Do outro lado, um banheiro, uma lavanderia e um canteiro abandonado com algumas cebolas murchas.

Moreti tem 11 filhos com 4 mulheres diferentes. Eles estão espalhados em São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia e alguns não o reconhecem como pai por causa de seu comportamento. "Não sou bom exemplo".

Na praça, em sua volta não se aglutina muita gente como quando o comediante Rodela faz seus espetáculos, mas tem seu espaço garantido e quando alguém se aproxima e pergunta:

- O que é isso aqui?

Ele rebate firme, em tom de afronta.

- Daqui só se aproxima quem tem consciência de classe. Se não tiver, se afasta porque aqui nasce um sentimento de insatisfação. Meu lema é luta, perseverança e consciência. Sou leal às minhas convicções até as últimas conseqüências.

Fã do filósofo Michel Onfray critica Lula e vai votar em Heloísa Helena, mas queria que o próximo presidente saísse do Piauí, da Amazônia, do Acre.

- O Piauí existe. Grita no meio da praça ao me ver.

- E que símbolo da Nike é esse na sua blusa? Vai tirar isso. Não vai me dizer que também toma refrigerante. Não faça isso. Você é uma moça instruída. Refrigerante não passa de detergente açucarado.

E continua em meio ao vai e vem de pessoas apressadas:

- Não confiamos no Judiciário, nem no Legislativo que só se unem para absorver seus comparsas.
Moreti é uma mistura de pertinência com rebeldia. "Quero mais é que minha rebeldia aflore". É profissional em atacar autoridades na rua. Ele adora fazer isso, partir para o confronto e conflito.

- They come back toward its land. Fala aos americanos que passam. Here isn’t place.

Quando percebe estrangeiro grita.

- Ei, e seu passaporte?

"Eles ficam doidos com isso e se escondem". Ri.

Na sua lista de afrontados vão desde policiais, a empresários como Antônio Ermírio de Morais, do Grupo Votorantim ao ex-governador Mário Covas:

Era num domingo e não tinha ido para a praça, mas de repente bateu uma grande vontade, pegou a bicicleta e foi até lá onde estava acontecendo a inauguração do prédio das Casas Bahia. Quando chegou lá encontrou o ex-governador. Não resistiu. Gritou:

- Mário Covas, renuncie.

Os rostos de quem estava por ali se voltaram.

- Os professores estão passando fome. Você vai ficar conhecido na História como o governador que mais massacrou os professores.

Mário Covas foi até Moreti e colocou o dedo em sua cara. Ele também era atrevido.

- Eu conheço o seu tipo. É um esquerdinha de esquina. Se eu te der um emprego agora você não vai trabalhar.

"Em parte era verdade. Ele era inteligente, não foi à toa que chegou a ser governador do Estado, mas também não me dei por vencido, pois ele me subestimou. Fiz cara feia".

- Mário Covas, você não tem mais saúde. Renuncie.

"Os guardas foram para perto de mim, peguei minha identidade. Mostrei e fiquei com ela estendida".

- Estou exercendo meu direito de expressão.

- Renuncie Mário Covas. O povo não quer você. Está inválido.

"Fui preso por desacato à autoridade, aplaudido pelo povo que estava do lado da praça e vaiado pelos ricos da festa de inauguração".

"Gosto mesmo de afrontar. Quando vejo essas madames falo: Madame, a senhora com essas jóias caras, roupas de marca sabia que embaixo desse viaduto tem famílias passando fome e crianças que roubam para comer? Sabe o que te desejo madame? Que no próximo farol seja assaltada por um destes meninos e que um revólver dispare acidentalmente em você. Elas saem de perto de mim horrorizadas".

Ele continua disparando palavras que entram como balas nos ouvidos dos transeuntes.

- Vamos ler minha gente. A educação é a grande saída. O Brasil é conhecido lá fora como BBJ (Bola, Bunda e Jesus). Temos que ser conhecidos porque pensamos e somos inteligentes, resolver nossos problemas sociais.

Ted Silva chega com um amigo goiano que está visitando a capital paulista. "Vir a São Paulo e não conhecer Moreti, não conheceu São Paulo".

Mas Moreti se diz cansado psicologicamente. Há sete anos na mesma rotina na praça ouvindo músicas abaixo de seu nível intelectual. "São letras que não dizem nada, feitas para alienar e esse som irritante, sem harmonia me cansa a mente. Impressionante que em volta desses ‘talentos culturais’ se forma uma grande aglomeração. Esses aí não têm jeito. Tem mesmo é que arrancar a cabeça fora e fazer sabão".

Quando conseguir passar à frente a casa onde mora vai embora para seu sítio no Rio de Janeiro onde pretende cuidar de sua roça, plantar seus pimentões, feijão, abóbora e à tardinha pegar a bicicleta e ir para a saída das escolas. "Um homem como eu não consegue ficar parado e adoro a saída das escolas para continuar minha missão de recrutar jovens".

São Paulo estar prestes a perder quem nunca teve, de fato.

Making off

Passando pela praça Ramos de Azevedo me deparo com a figura de Rossi Moreti gritando em frente a uma mesa lotada de livros. Sua figura me chamou atenção. Parei e comecei a conversar e tentar compreender qual o seu objetivo. Nesse dia tinha acabado de ver a aula sobre a “Jornada do Herói” e sua história se encaixou perfeitamente. Uma figura muito inteligente. Toda sua trajetória é bastante singular a começar pelo chamado, que acontece de forma inusitada... “Um dia sonho com o Che me incubindo de uma missão”.

Passei a acompanhá-lo e o fiz por dois meses, o observei por tardes inteiras ouvindo suas histórias e acompanhando os acontecimentos. Senti necessidade de conhecer sua casa e fiz uma visita informal no domingo a fim de conhecê-lo melhor e sua companheira Ruth. Em nenhum momento utilizei gravador (aliás, nunca uso) e evitei fazer anotações na frente do entrevistado, apesar de ele saber do meu interesse profissional e que era sujeito principal de minha narrativa.

(escrita em agosto de 2006)

Um comentário:

  1. Tem noticias dele? Era Office Boy aquela época, fumamos muita maconha juntos, falava muito do che, som e cerveja...saudade...

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